Entre o inimigo e o salvador da Pátria: tempo de paixões

Convivência social não é uma escolha. Não é possível eliminar o outro. Os debates sobre propostas de encaminhamento do país dão-se exatamente no confronto com posições diferentes das minhas.

Por Léo Rosa de Andrade*

Mantenho uma nota de gosto ao perceber que os brasileiros retornaram às posições políticas, às defesas de lugar partidário, enfim, a ter gosto e desgosto com o que acontece nas relações de poder que nos alcançam o cotidiano.

Concomitantemente, preocupam-me os insultos que proliferam, marcadamente de dois grupos com identidade específica, nas mídias sociais. É que insulto não é apenas um modo de dizer ríspido, que dificulta a troca de ideias.

Insulto: “ação ou resultado dela que deixa transparecer aversão ou menosprezo pelos valores, pela capacidade, inteligência ou direito dos demais” (Houaiss). Ora, se eu recuso esses atributos do outro, estou recusando o outro.

Acontece que a convivência social não é uma escolha. Não é possível eliminar o outro. Os debates sobre propostas de encaminhamento do País, então, dão-se exatamente no confronto com posições diferentes das minhas.

bolsonarohadddadA Tradição Ocidental inventou o sistema eleitoral como forma de debate de propostas governativas. A propaganda partidária que antecede o certame presta-se exatamente para que os candidatos persuadam os eleitores.

Nas democracias, há o suposto da convivência com o diverso. No regime democrático, debates que lhe garantem a existência só são possíveis se aceita a possibilidade de uma disputa entre diferentes modos de ver o mundo.

É dizer: a controvérsia é o apanágio da democracia, e a persuasão é o meio de obter o voto legítimo. O eleitor persuadido pode militar pelo seu candidato, mas não é legítimo supor que seria democrático calar o adversário.

Mas estamos nesse ponto: o de paixões. Paixão no sentido kantiano, de inclinação violenta das emoções até a incapacidade de domínio da conduta, deixando-a afastar-se da desejável posição autônoma e racional de escolha.

Perda da sensatez: muitas pessoas se estão deixando aglomerar em massa irracional de manobra, odiando o “inimigo” e se atirando em idolatria por seu “salvador da pátria”. Assim, já estamos em práticas avessas à cidadania.

A moderna democracia decorre da Modernidade, período em que o Iluminismo pode fundar-se e prosperar, trazendo a cidadania e a ideia de que o cidadão saberia ser razoável, atuando sobre si e a sociedade por meio da razão.

É verdade que a humanidade nunca deu totalmente conta em estabelecer-se como racional, mas, estamos no revés da lucidez. Estamos inconsistentes, discursando efeitos sem causas e negando causas a certos efeitos evidentes.

Se uma república pede o debate fundamentado, um país com torcidas apaixonadas promove o pretexto. O subterfúgio substitui o argumento. Na carência de resposta, apela-se à falácia ad hominem, ataca-se o interlocutor.

Só assim um militar aposentado ousaria negar a tragédia da Ditadura de 64 e propor a violência como método conducente à boa vida em comum. Só assim um candidato enalteceria um torturador e arremedaria tiros no adversário.

Só assim o grupo que se atreveu a elevar a corrupção a política de Estado alcançaria obnubilar os fatos, fazendo seus adeptos acreditar que não são uma quadrilha, mas vítimas de uma conspiração midiática-judicial-militar.

O candidato que tem gosto por ditadura nem partido político subsistente tem. Terá que negociar muito. O candidato cujos dirigentes partidários estão na cadeia por roubarem tem partido que negociou demais. É um partido comprometido.

Talvez tenhamos que votar não obstante tudo isso, apesar do que temos feito com nós mesmos, e talvez tenhamos que escolher o mal menor. Mas isso seria uma escolha estremada. Até então deveríamos estar exigindo ideias.

A nostalgia da ditadura recente e o desvelamento do maior sistema de corrupção de que se tem notícia no País nos trouxe um recrudescimento assustador de posições sectárias, intolerantes, desarrazoadas, apaixonadas.

Entre arengas de “nós e eles” propalados pelos líderes dos principais contendores, ganhamos como promessa eleitoral frases de efeitos, discursos vazios que apelam ao saudosismo conservador ou a uma esperança sem lastro.

Ambos os lados nos garantem a titularidade das “soluções”, das suas soluções como saída única. Seja o apelo à ordem, seja o apelo ao revide às “perseguições”, todavia, essas respostas não são a solução de que a Nação carece.

O Brasil, esquerda inclusive, é conservador. O tempo da Ditadura me é inominável. O tempo da esquerda no poder foi de ladravazes e de enriquecimento de empreiteiras e bancos. Foi de falência do Estado. Falência que assusta.

As pesquisas eleitorais remetem a um segundo turno e dizem que os grupos que referi estarão nele. O líder de um deles manifestamente promete nos desvirtuar de volta a um passado que nunca coube e que não caberá jamais.

O líder do outro está preso. Por prática administrativa (salvo nomear os amigos do filho) e formação intelectual, o substituto revela-se compromissado com a civilização. Se conseguir se desvencilhar dos corruptos, talvez vá bem.

Eleitor\a, desapaixona-te. É tolo que odeies o “inimigo”; não é menos tolo que estejas apaixonado\a pelo “escolhido”. Tudo o que se pode fazer é dar melhor continuidade à História. Mas, à nossa História, que não é fácil.

*Léo Rosa de Andrade é doutor em Direito pela UFSC, psicólogo e jornalista.

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