Memória e Utopia

O esforço da política é manter a busca diatópica da responsabilidade ética para garantir a memória e a utopia unidas, na busca da Justiça.

Por José André da Costa

A memória e a utopia são dimensões que movem os seres humanos para a estruturação de seus horizontes de sentido. A memória não é só lembrança de algo sucedido no tempo e que ficou estagnado no passado, mas a utopia é o chamamento do “não-lugar” para o “lugar” da memória história. A utopia também não é apenas um horizonte atemporizado, mas o impulso que tira da acomodação do presente. O ser humano, como estradeiro deste mundo, vive em constante busca, dosando a tensão saudável entre o aquém e o além, num esforço de conjugar a arqueologia e a escatologia. A busca de atualização da memória faz manter o passado aceso como conteúdo do presente. A luta utópica faz trazer o futuro como construção do presente com passado.

politica1Na memória pesa a responsabilidade política de reconhecimento ético às vítimas. Esquecer as vítimas é cometer injustiça com elas duas vezes. A utopia é o “não lugar” que tensiona a realização da ética, daquilo que não é, mas que precisa ser talvez “mais que deve ser”. A utopia é o horizonte que está sempre aberto como um chamamento para que não se repitam mais os equívocos do passado. No entanto, só o presente não nos basta. O presente “desligado” do passado pode se transformar em amnésia e alienação, do mesmo modo, sem futuro, pode se cair no “viosionismo apocalíptico”, encerrando também em alienação. A memória e a utopia são as feições éticas e políticas da justiça.

O “exercício da justiça” é o esforço de trazer o passado para “dentro” do presente com o propósito de não esvaziá-lo da responsabilidade histórica com os sujeitos que envidaram esforços para manter a história como construção da liberdade. Neste esforço dos sujeitos históricos na luta por liberdade, muitos pagaram um alto preço, custando-lhes a própria vida. A história está cheia de vítimas e mártires que lutaram para não coagular o passado e para não instrumentalizar o futuro em nome da ideologia. O perigo é querer decifrar o futuro, antecipando-o em “projetos emancipatórios”, o que é o mesmo que imanentizar a utopia em nome da justiça.

A história está farta destes exemplos de grupos que negaram a utopia em nome do realismo político. Houve época em que a utopia era uma “má palavra” e tinha conotação de alienação ou de negação da realidade histórica. A estratégia de separar a utopia da memória deu lugar ao “presentismo totalitário”, fazendo nascer daí a barbárie, às vezes feita em nome da emancipação, o que é um contrassenso incomensurável do ponto de vista ético. Se a utopia não pode estar separada da memória, o mesmo vale para a política e para ética, ou seja, não podem estar separadas. A ética não precisa buscar na política a sua legitimidade, mas a política precisa da ética a fim de ser justa.

A razão ardilosa sempre teve como estratégia a separação entre ética e política, transformando a política em “puro meio”, sem nunca colocar em questão o fim da política. Esta separação ardilosa é o espaço de onde brotam todos os tipos de totalitarismos. A separação entre utopia e memória e entre ética e política foram e são esforços empreendidos pelos regimes de exceção. Os ditadores fizeram, em muitos momentos da história, o discurso da utopia para encobrir a memória.

A finalidade da política é abrir a memória para descortinar a injustiça praticada em nome da utopia. A utopia, sendo o “não lugar” é, ao mesmo tempo, o tensionamento para descortinar o lugar encoberto pelo verniz da capa totalitária. O papel da razão é manter a crítica acesa para não correr o risco de instrumentalizar a memória e imanentizar a utopia em nome da “melhor sociedade”. A barbárie é fruto direto desta instrumentalização da utopia e da memória que é uma estratégia ardilosa para nunca deixar as vítimas falarem para reparar seus direitos humanos negados. O acirramento desta dicotomia entre memória e utopia gera a amnésia que é o descompromisso ético-político com os vitimados/as. As vítimas clamam sempre por justiça.

Assim, fazer frente a esta aclamação, o trabalho da política é buscar perdão às vitimas. Mas a questão é saber se o perdão repara a injustiça sofrida pela vítima. A combinação entre perdão e política é uma tarefa difícil, mas que não pode ser abandonada em nome da dificuldade humana. Esquecer as vítimas é aumentar sua dor e mais ainda, a injustiça contra elas. Mesmo que a política não alcance o perdão, não dá para ignorar que as vítimas são fruto da injustiça e clamam por perdão e justiça. Assim, o esforço da política é manter a busca diatópica da responsabilidade ética para garantir a memória e a utopia unidas, na busca da Justiça.

*José André da Costa, msf, é Diretor Geral e Professor de Filosofia do IFIBE - Instituto Superior de Filosofia Berthier, Passo Fundo, RS.

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