Apontamentos sobre proteção social e a filosofia dos povos originários

Dois pilares dirigiram a ação dos chamados conquistadores no Brasil: a ânsia por novos espaços de exploração de riquezas e a negação do outro, não igual.

Por Elaine Tavares*

A ideia de proteção social como dever do Estado é uma formulação típica do capitalismo em sua forma histórica na social democracia europeia do pós-guerra, e seus agentes buscaram universalizá-la dentro da lógica do que chamaram estado de bem-estar social. Essa concepção de mundo, fortalecida com a expansão do sistema capitalista, buscava dar respostas para a vida que emergia no espaço urbano/industrial, reivindicando direitos. Uma proposta bem europeia, na qual o estado garantia alguns direitos aos trabalhadores, permitindo assim que a ordem social permanecesse inalterada. No Brasil, majoritariamente camponês até os anos 1930 do século passado, essas políticas sociais de cunho citadino chegaram tarde e permanecem incompletas. Afinal, mesmo com a urbanização, o espaço rural ainda é significativo e os problemas causados pelo latifúndio seguem assombrando milhares de pessoas (PEREIRA-PEREIRA, 2000, p.124 -180). Não bastasse isso, o país está situado na periferia do sistema, portanto, sob o signo da dependência, no qual predomina muito mais a superexploração da força de trabalho do que direitos sociais aos trabalhadores.

No universo das questões inconclusas do processo brasileiro de proteção social está a questão indígena. Num limbo entre trabalhadores da cidade e agricultores/proletários rurais e camponeses, os povos originários ainda não encontram lugar dentro da estrutura do Estado. Apesar de a Constituição de 1988 ter garantido um capítulo inteiro para os direitos indígenas, não tem sido fácil a luta empreendida traduzi-lo e até para para mantê-lo como horizonte possível. Em 2016, começou a tramitar no Congresso uma Proposta de Emenda Parlamentar (a PEC 215) que, inclusive, pretende inverter toda a lógica de demarcações das terras, tirando a prerrogativa do executivo, passado para o legislativo federal. A proposta é tão lesiva aos povos indígenas que, não bastasse essa investida, os deputados ainda querem rever o processo das terras já demarcadas, o que pode configurar um retrocesso gigantesco nos direitos já conquistados, que é o de permanência e de garantia das terras ancestrais.

Desde a conquista, iniciada em Pindorama no ano de 1500, o estado brasileiro tem passado por algumas fases bem específicas no trato com as populações indígenas. Primeiro, a lógica foi de extermínio, visto que eles não se adequavam à escravidão. Depois, como não foi possível acabar com as comunidades, iniciou-se o chamado processo de integração à sociedade, com a tentativa de “civilizá-los”, considerando assim suas culturas como algo sem valor. Nesse paradigma, os povos que sobreviveram tiveram de se submeter à tutela do estado, ou confinados em reservas, ou se perdendo nas cidades, nas quais nem eram brancos, nem eram mais vistos como índios, o que provocou uma diminuição drástica das populações.

Marisol Kaiowá

Nesse último período histórico, o serviço social reservado aos povos indígenas parece seguir a mesma lógica usada para as populações empobrecidas, sem que se leve em consideração a especificidade da cultura dessas pessoas. Os povos originários – principalmente aqueles que ainda vivem em aldeias, de acordo com seus costumes tradicionais - não atuam no mesmo diapasão que os trabalhadores, sejam eles do campo ou da cidade. Logo, precisaria haver uma preparação mais específica para o trato com essas populações, levando em consideração a cultura e o modo de ver o mundo de cada etnia. Conhecer em profundidade a filosofia que orienta o viver indígena passa a ser fundamental para um atendimento respeitoso e compreensivo. Afinal, essa é uma realidade – o precisar de assistência - que ainda tem de ser aprendida pelos indígenas.

“No tempo em que meus pais eram jovens, no tempo dos meus avós, os Kaingang não precisavam de assistência social, porque sabiam como se virar. Sabiam onde tinha caça, pesca, frutos do mato. Sabiam também fazer chás com ervas medicinais. Tinham também os seus próprios médicos, os Kujã, e os conselheiros, que eram uma espécie de assistente social.” (PEREIRA in SCHWINGEL, s.d)

Se a proposta de bem-estar social foi a ideologia do sistema capitalista para garantir a sedução do trabalhador (ABREU, 1997), isso não chegou a ser cogitado para os indígenas, afinal, esse grupo social não está integrado na correia produtivista do capital. Hoje, na Europa, onde o bem-estar social avançou bastante, já está havendo a destruição dos direitos, justamente por conta de que o capital não precisa mais seduzir ninguém. Está consolidado e domina todas as esferas da vida. Mas, para os povos originários, esse abandono de que sofrem hoje os trabalhadores, sempre foi a regra. A demarcação de suas terras, tanto no Brasil como nos demais países da grande Abya Yala (as três Américas), sempre foi um processo eivado de conflitos e o pouco que foi garantido precisou – e ainda precisa - de muita luta.

Considerando que a América Latina faz parte da periferia do sistema capitalista, os povos originários que aqui resistem precisam enfrentar duplo desafio: vivem numa economia dependente que superexplora os trabalhadores e que não os reconhece como um substrato que mereça qualquer atenção, já que não se enquadram na lógica da produção, e não conseguem vivenciar sua cultura porque dependem de seu território, ainda negado para a maioria. Isso leva a hipótese de que enquanto as etnias sobreviventes no país (305) não se transformarem elas mesmas numa mercadoria – como um folclore vendável, por exemplo - o sistema capitalista continuará insistindo no seu extermínio. Por isso as vistas cegas para a ação sistemática dos fazendeiros e seus jagunços em quase todas as regiões do país.

No campo da seguridade social muito pouco há de formulação sobre a especificidade do indígena. É fato que existem políticas particulares de atendimento à saúde e à educação que buscam levar em consideração a singularidade do sujeito indígena, mas ainda está muito longe dos formuladores dessas políticas a compreensão profunda da vida dos povos originários. No mais das vezes, o atendimento que se dá às necessidades dos indígenas segue a mesma cartilha daquele que é prestado ao trabalhador. Ou seja: trata-se de maneira homogeneizada grupos radicalmente distintos.

Num seminário realizado pela Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social do Rio Grande do Sul, em 2004, a fala do Guarani Felipe Brisuela deixa isso muito claro.

“Muitos pensam porque o Guarani é quietinho ele não sabe das coisas. Aí branco chega e não pergunta. E vai fazendo tudo por conta. É isso que hoje atrapalha. A política do branco é diferente. Para nós, Guarani, os projetos tem de ser pensados pelo povo Guarani. Tem que sentar juntos e se preocupar juntos. De parte de nós Guarani, a maior preocupação é a terra. Por isso, os Guarani estão lutando pela terra. A saúde, para os Guarani não é só trabalho, alimento, produção. Saúde é ter terra, os costumes, alegria e felicidade” (BRISUELA in SCHWINGEL, s.d)

Justamente por observar sistematicamente essas incompreensões no trato da questão indígena que nossa contribuição se insere no campo das políticas sociais buscando oferecer uma compreensão totalizante da ontologia originária. Quem é, em profundidade, esse ser que transita nessa espécie de limbo: está na cidade, mas não é branco, está na aldeia e não é visto como alguém com direitos e imerso numa cultura diferenciada? Entendemos que conhecer a filosofia que conforma o modo de ser indígena é um pequeno passo para garantir não apenas a formulação de políticas capazes de dialogar verdadeiramente com os povos indígenas, como também, finalmente, estabelecer o verdadeiro diálogo intercultural que não ocorreu na invasão e continua sem acontecer.

Quem é o índio latino-americano?

O índio não é como o homem branco. Uma frase como essa pode até parecer boba, mas não é. Tivessem clareza disso os homens que chegaram ao território de Abya Yala, em 1492, a história poderia ter sido outra. Por outro lado, é sabido que os navegantes da esquadra de Cristóvão Colombo tampouco poderiam ter outro entendimento da realidade que não o que tinham. Eram eles fruto da cultura ocidental cristã, europeia, toda ela calcada na concepção grega de ser.

Na profundidade da filosofia que ordenou o chamado início da era moderna europeia, o ser era unicamente o igual, tal qual ensinavam os gregos. Tudo aquilo que não fosse igual ao europeu era considerado não-ser, portanto ficava respaldada toda a sorte de ações de extermínio a tudo o que, não-sendo, se colocava no caminho do conquistador (ZIMMERMANN, 1987).

Enrique Dussel (1993), um filósofo argentino, demarca o tempo mundial, estabelecendo justamente a data de 1492 como o início da modernidade europeia baseada não mais no “ego cogito” (eu penso), mas sim no “ego conquiro” (eu conquisto), ancorada totalmente nessa concepção grega do mundo. É o que ele chama de “o encobrimento do outro”. Tanto no lado mediterrâneo, com a demonização e expulsão dos mouros, quanto no espaço atlântico, na negação dos povos do continente africano e dos povos do chamado “novo mundo”.

Ligada a essa concepção de mundo estava também toda uma prática do convulsionado mundo europeu de guerras e saques, em busca da riqueza. Assim, o que jogou espanhóis e portugueses ao mar foi justamente o desejo de encontrar caminhos alternativos para a rapina, como muito bem analisa o brasileiro Manuel Bomfim (1996), no extraordinário livro “O Brasil nação: realidade da soberania brasileira”. Foi assim que eles se depararam com o continente africano e com Abya Yala.

Foram então esses dois pilares que dirigiram a ação dos chamados conquistadores: a ânsia por novos espaços de exploração de riquezas e a negação do outro, não igual. No caso do Brasil, a chegada foi em 1500 e seguia a mesma lógica das incursões já realizadas no oriente e na África. Os homens queriam o ouro e aqueles tipos que beiravam a praia, falando uma língua incompreensível, eram não-seres, prontos para serem destruídos em nome da ganância.

O encontro entre portugueses e os Pataxó – os primeiros a fazerem contato - foi documentado pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, que enviou o relato ao rei, no qual ficava bastante visível essa postura: Como eram criaturas sem religião e não falavam as línguas “cristãs”, haveria que “amansá-los e civilizá-los” para que melhor servissem ao rei.

“...acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado”. (CAMINHA, s.p)

E estavam tão seguros de que aquela gente não tinha qualquer cultura que merecesse ser respeitada que o escrivão afirmou:

“Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa”. (CAMINHA, s.p)

Mas, o povo encontrado, desde a Dominica – aonde chegou Colombo – até os cantões dos Andes tinha cultura, sim. Alguns deles, inclusive, já tinham construído grandes estados e até impérios. E todos eles lutaram bravamente contra os invasores. O primeiro a perceber que ali estava uma gente disposta a destruir e saquear foi o cacique Taíno, de nome Hatuey. Ele chegou a remar, sozinho, de Dominica até a ilha de Cuba, para avisar os parentes sobre os homens que chegavam do mar, e contra eles travou longa batalha. Foi em vão. Os espanhóis e depois os portugueses vinham com armas nunca vistas, que matavam em massa. E, além disso, usaram de maneira muito hábil o engano, a mentira e a cooptação para perpetrar massacres, dizimando comunidades inteiras. Foi assim no Caribe, no México, no Peru e no Brasil.

A conquista do novo mundo foi a história do extermínio, do roubo e do massacre, tudo feito em nome de deus e do ouro. No cerne do processo estava a ideia grega do ser como igual e o diferente como não-ser.

A comprovação dessa matriz filosófica pode ser encontrada nos registros dos debates entre Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, em 1550, na cidade de Valladolid, Espanha, conforme conta Gutiérrez (2014). Naqueles dias, eles debatiam a legalidade da conquista do novo mundo e a legalidade da ação de extermínio dos índios.

Para os que defendiam a matança, a justificativa estava em Aristóteles. Se os bárbaros são naturalmente escravos, então é lógico e lícito fazer a guerra para subjugá-los ou exterminá-los. Os índios eram considerados bárbaros, então, tudo estava certo.

O frei Bartolomé de las Casas defendeu argumento contrário dizendo que não se podia aplicar o conceito de bárbaro aos índios, pois, reconhecia ele, os mesmos tinham uma cultura bastante rica e que a violência praticada contra eles não era cristã. Nos seus argumentos ele insistia em dizer que Aristóteles, ao afirmar o que disse na Grécia antiga, era um ser desprovido da verdade cristã e que, por isso, não se poderia simplesmente aplicar um conceito de uma época a outra. Las Casas ainda usou o artifício de dividir o conceito de bárbaro em várias classes, mostrando que os indígenas faziam parte de um tipo de bárbaros – os que não tinham escrita - mas que esse fato não poderia ser motivo para escravidão ou o extermínio.

O famoso tribunal de Valladolid nunca teve um veredito sobre o caso, mas a prática mostrou que Sepúlveda foi o vencedor. Ele defendia que os indígenas do novo mundo eram bestas selvagens e sem alma. Foi com base nisso que os massacres seguiram.

Um salto na história

Esse trabalho não buscará contar toda a violência da conquista. Há textos muito bons sobre isso. Nossa intenção é mostrar que os povos invadidos tinham sim uma filosofia e uma cultura riquíssima, digna de ser respeitada. Uma filosofia que resistiu ao massacre e ao tempo e que ainda hoje vive, alimentada no interior de cada ser originário e contada de pai para filho, de mãe para filha, de pajé para a comunidade.

Dussel (2015) registrou que todos os povos do mundo têm seus núcleos problemáticos e suas perguntas ontológicas. Os mitos são narrativas simbólicas que contém significados universais e conceitos profundos. Os povos cumprem suas funções na vida cotidiana justamente por conta dos sentidos que dão aos mitos. Esse núcleo ético/mítico (visão de mundo), mesmo em situação de submissão ou violência segue vivo e resiste. Foi o que aconteceu. Ainda que durante séculos os povos originários tenham sido tratados pelos conquistadores como “animais sem alma”, ou “escravos por natureza”, no interior de suas culturas, outras formas de entender o mundo determinavam suas vidas.

Hoje, com o renascimento radical dos movimentos originários em toda Abya Yala (nome dado ao mundo conhecido pelos povos do Caribe), conhecer essas filosofias ou os núcleos ético/míticos das comunidades é condição fundamental para compreender os motivos das lutas por demarcação de território e pelo direito a viver suas formas culturais. Com o aprofundamento desse conhecer duas coisas ficam bastante claras para os não-índios: a filosofia que sustentou as políticas viabilizadoras da invasão e do massacre dos povos originários ainda é a mesma, e o desconhecimento da filosofia fundante dos povos autóctones também segue. Nesse sentido, fazer o esforço para conhecer em profundidade a cosmovisão indígena é o único caminho para que, finalmente, possa se dar um encontro real de culturas. Despido de pré-julgamentos, capaz de estabelecer um diálogo verdadeiro.

A filosofia fundante dos povos de Abya Yala

León-Portilla (in Dussel, 2015) conta que os tlamatinime (sábios) do povo Náhuatl, que viviam na região central do que hoje é o México, tinham um mapa do mundo e acreditavam que havia um ser supremo e uma terra (Tlillan) que era um lugar de saber, além da morte. Sua caminhada na terra, ante de chegar a Tlillan, deveria ser o compromisso de criar aqui – na imanência – o Toltecáyotl, que significa “o melhor que pode existir na terra”. Para tanto, havia as casas do saber onde os jovens eram ensinados nessa filosofia, repassada através de cantos que depois eram cantados nas comunidades, fortalecendo a ideia e tornando concreto o “bem-viver”. Nezahualcóyotl, um sábio náhuatl que viveu entre 1402 e 1472, deixou plasmado nos cantos – recuperados por León-Portilla - o conceito de que tudo sobre a terra é fugaz, e que o principal elemento que determina a vida é justamente a mudança, o tempo passando. Para ele, o canto e as flores (grifo meu) eram o caminho mais seguro para chegar não só ao ser supremo e à Tlillan, mas também para viver nessa vida.

Esses conceitos, cantados e repassados de geração em geração, eram os pilares da vida dos povos que viviam no grande território mexicano, totalmente diversos dos fundamentos do mundo ocidental, baseados na imobilidade do status quo (Parmênides), e consolidados na gesta guerreira de Fernão Cortez. Nada dessa filosofia foi reconhecida no chamado “encontro de culturas”, justamente porque o pensamento que comandava as ações espanholas e portuguesas não conseguia apreender e compreender essa forma de viver.

Já os povos do Caribe e da América Central estavam submetidos a uma filosofia ainda mais consolidada, em escritos e pictografias. Díaz (In Dussel,2015) registra que o povo Maya deixou um legado riquíssimo em dois livros básicos da cultura mesoamericana: o Popol Vuh e o Chilam Balam, livros da comunidade que contém a história da criação e informações sobre história, medicina, astrologia, astronomia e rituais.

Para os mayas o mundo havia sido criado por Tepeu e Gucumate a partir do coração do céu, e eles tornavam as coisas vivas a partir da palavra. Assim fizeram a natureza e o homem. Então, na concepção maya de ser é preciso primeiro existir para depois pensar. Primeiro a matéria, depois o transcendente. O maya pensa desde a corporalidade, utiliza o corpo para se orientar no mundo. Na comunidade, o “nós” era a palavra predominante na vida: viver em comunidade, trabalhar em comunidade, compartilhar as necessidades, os problemas.

O homem e a mulher maya não concebiam a vida sem a natureza, eram parte dela, coabitavam juntos o mesmo espaço. A natureza era considerada um ente, possuidor de coração (alma), embora estivesse em outro estágio da vida. Em síntese, para compreender a vida era necessário rosto e coração, tudo tinha de estar ligado.

Outro elemento profundo da filosofia maya é o sentido de sujeito. Enquanto para a cultura ocidental cristã existe a separação entre sujeito e objeto (exemplo: ao dizer “eu te disse”, se pressupõe um ser que fala de maneira imperativa), na cultura maya a relação é entre dois sujeitos (exemplo: não há a expressão “eu te disse”, mas um “eu disse, tu escutaste” – dois sujeitos, passivo e ativo a cada vez). Entre os tojolabal há uma palavra para a língua falada e outra para a língua escutada, eles mesmos se denominam “os que sabem escutar”. Isso denota claramente um respeito pelo outro e mostra o motivo de a recepção aos brancos que chegavam do mar ter sido tão pacífica. Havia ali um povo acostumado a viver de maneira a ouvir primeiro.

Diáz também conta que para os povos viventes do grande México não apenas a natureza pulsa com vida, mas também as coisas feitas pelos homens tem vida própria (têm coração), e ao serem feitas adquirem parte daquele ou daquela que a fez. A casa é formadora do próprio corpo. Não foi sem razão que depois da revolução de 1930, no México, os indígenas se recusavam a viver nas casas grandes, construídas pelos fazendeiros, e tampouco aceitaram viver nas casas construídas pela Reforma Agrária realizada pós-revolução. Entendiam que as casas – tanto a dos fazendeiros, como as do governo – estavam impregnadas de outros espíritos que não os dele. Essa concepção profunda da realidade é, portanto, fundamental para a relação atual com os originários. Porque, afinal, esse núcleo ético-mítico ainda vive nos povos, na profundidade do ser.

Estermann (In Dussel, 2015) diz que no espaço dos povos andinos, já na parte da América do Sul, a filosofia das gentes está plasmada da concepção inca de mundo, que é, por sua parte, um acúmulo de elementos das culturas mais antigas como a Chavín, Paraca, Mochica, Tihuanaca, Nazca, Wari, Chimú e Lambayeque. E o elemento central dessa filosofia é a “pacha”, que significa o universo – não apenas físico - ordenado em categorias espaço-temporais. Pacha seria o ser, o que é, o existente, a realidade, mas o conceito engloba também o invisível. Tudo é relacional e faz parte da mesma realidade. Não há separação entre o mundo físico e o mundo transcendente. Neles a totalidade não é uma possibilidade heurística, é uma condição ontológica.

Na racionalidade ocidental o ente é o ser-em-si-mesmo, há o indivíduo e a autonomia do sujeito. Para o runa (ser humano) quéchua o universo é um sistema de entes inter-relacionados, dependentes um do outro. Não existe o ser-em-si-mesmo, não há seres absolutos, tudo está em correspondência. Isso determina inclusive a organização social, onde o “nós” ou a ideia de comunidade é indissociável da realidade do entorno. Por isso, a ideia de Pacha Mama é unificadora da concepção de mundo. A terra, como mãe, se relacionando com tudo que vive. Assim, para um povo originário andino, a exploração da natureza aos moldes do capitalismo – que esgota e destrói – é incognoscível.

As comunidades que viviam no caminho da coluna vertebral andina tinham quatro princípios com os quais regulavam a vida.

1 - Princípio da Correspondência – Tudo se corresponde, o pequeno com o grande, o interno com o externo, a terra com o cosmo. Por isso os fenômenos de transição como as nuvens, os montes, os solstícios, as fases da lua são coisas sagradas. Tudo liga o hapaq pacha(espaço de cima) ao kay pacha (o aqui, agora) e ao ukhuy pacha (mundo dos ancestrais).

2 - Princípio da complementariedade – Todas as coisas têm uma contraparte, um ser sozinho é incompleto, a oposição não serve para paralisar, mas para dinamizar a realidade. Há uma relação nas oposições, um equilíbrio dialógico. Uma dialética essencial.

3 - Princípio da reciprocidade - A cada ato deve corresponder um ato recíproco, seja entre humanos, humanos e natureza, humanos e divindades. A ética, portanto, não está limitada ao humano apenas. Há uma ética cósmica. Para eles a reciprocidade não é um ato de vontade individual, mas um dever cósmico que reflete a ordem universal da qual o ser humano é parte. Isso é o que determina o senso de justiça.

4 - Princípio da ciclicidade - o tempo e o espaço são coisas que se repetem, há um movimento circular ou espiral interminável. Cada círculo é um ciclo, uma estação. Não há nada de novo, tudo volta. O tempo é uma relacionalidade cósmica, como o bater de um coração. Para eles o tempo se divide entre o antes e o depois e tem densidade, tempo forte, tempo fraco. Cada lapso no tempo tem o seu propósito e não é dado ao homem pressionar o tempo. Tudo é feito na hora que tem de ser feito.

Esse último princípio explica em alguns aspectos a aceitação da conquista. A invasão foi considerada como o fim de um tempo e o início de um novo ciclo. Por isso, esperam pelo novo pachakuti (que é o novo círculo) a começar outra vez, uma nova realidade.

Ricardo Salas Astraín (In Dussel, 2015) fala sobre a filosofia Mapuche, uma etnia que vive no sul do Chile e norte da Argentina e que tem algumas particularidades a se diferenciarem das culturas andinas em geral. Para os Mapuche há uma vinculação entre a língua (mapudungum), os saberes (kimün) e o modo de ser (mapumogen) e é isso que tem garantido a eles a identidade e a resistência, século após século. O pensar mapuche elabora sentidos no campo antropológico, ético, epistêmico e ontológico. Essa cultura é passada aos sábios - que podem ser homens ou mulheres – e tem se ressignificado nos novos tempos.

Não há dissociação entre filosofia, religião e arte, não há separação entre a ciência do mundo e a sabedoria da vida. Não há separação entre o homem e o ambiente. Também são materialistas e entendem que o pensamento brota do mundo da vida. O che (ser) está em permanente construção, não é só corpo, tem mente, espírito e segue depois da morte. O ser mapuche é o ser da terra (mapu: terra, che: ser), parte dela. O sentido da comunidade é um conceito central para entender essa etnia que também se vale dos conceitos de reciprocidade, redistribuição e horizontalidade.

Por fim, Bartolomeu Meliá (In Dussel, 2015) traz os conceitos dos povos que viviam na região mais tropical, hoje representada pelo Brasil, e plasmada na filosofia Guarani. Era uma típica sociedade sem estado, sem governos centrais, baseada na reciprocidade. Não havia posses pessoais, tudo era comum. Os jesuítas – ao conhecerem sua forma de ser no mundo – os chamaram de comunitários-cristão, criando inclusive, com eles, as famosas missões.

Para os Guarani a vida, a sabedoria e a filosofia estão na palavra, por isso é tão importante a fala dentro da opy (casa de reza). O homem, ao nascer, é uma palavra que se põe de pé e a educação, para um Guarani, consiste em desenvolver essa palavra na história.

“Quando a terra não era, em meio às trevas primeiras, quando não havia conhecimento das coisas, florescer em si o fundamento da palavra”. A palavra é o todo e o todo é a palavra. Nesse sentido, os Guarani são, na verdade, discípulos da palavra, com a qual recontam sua história e seus costumes pelas noites a fio. Para eles, a relação com a natureza é de equilíbrio e reciprocidade. Como as demais etnias não concebem separações entre o homem e o entorno. Tudo o que vive é sagrado e tem espírito.
A terra

Esses elementos da filosofia profunda dos povos originários hoje plasmados na América Latina (Abya Yala) são fundamentais para entender o processo de luta pela demarcação das terras no atual movimento indígena que começa a crescer nos anos 60 do século passado e atinge seu ápice no início do século XXI, mantendo-se em evidência. Por que a demarcação dos espaços originais é importante? Porque dentro do contexto da cosmovisão indígena, o homem é inseparável da terra.

Como bem explica Gersem Baniwa, em entrevista a Rubens Lopes, há uma grande distancia na forma de compreender o território. Para os indígenas é fonte e condição de vida. Não é possível viver sem o território, porque ele é natureza integrada, é o cosmos. Não é só a matéria, mas tudo o que envolve o meio ambiente, o ar que se respira, os espíritos sagrados, lugar de coexistência de todos os seres, humanos e não-humanos.

“Para o branco a terra é o espaço onde se exerce o poder, patrimônio, um recurso material, como valor monetário. Já a posse da terra no mundo não-indígena é medida por mero quadrado e como patrimônio financeiro. Para nós a vida é sagrada e o território é sagrado”.

Baniwa explica que quando um espaço é sagrado há uma relação espiritual profunda das pessoas com o lugar. Por isso se registra uma reação tão forte quando uma comunidade é tirada do seu espaço original. Eles vivem na integralidade, passado, presente e futuro. Uma força que não pode ser quebrada. Se quebra, destrói a totalidade da comunidade.

“Não há sofrimento maior para o povo indígena do que ser retirado de sua terra, porque ao ser tirado dali, ele perde a conexão com a vida sagrada. A relação não é com o solo, é a cosmologia que concebe tudo que vive como sujeitos, com seus espíritos. As pedras, por exemplo, tem seus espíritos também. Por isso elas são sagradas. Não podem ser exploradas de forma indevida. Eles exploram a natureza, mas a caça, a pesca, tudo está cheio da relação sagrada. O caçador oferece oferendas para a natureza, tem uma relação de reciprocidade. Na visão cosmológica indígena o que prevalece é a vida, e os povos entendem a necessidade da auto realização da natureza. O que interessa é justamente o equilíbrio. Isso se choca com a visão materialista da cultura ocidental. A vida não tem valor, o que tem valor é a riqueza e como bem individual. É uma cultura econômica que pesa sobre o território, que para nós é espaço de viver, enquanto os brancos pensam o território para enriquecer, acumular. Os povos se recusam a acumular” (BANIWA, 2016).

Essa é a fala de uma liderança indígena, em 2016. Absolutamente equiparada à filosofia originária que explicitamos no início do texto. Isso mostra o quanto esse modo de viver, ou esse ñande reko (modo de ser, em guarani), ainda vive com toda fortaleza no simbólico e na cultura dos povos indígenas.

*Elaine Tavares é jornalista.

Referências

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regulação socioestatal. In: Praia Vermelha: estudos de política e teoria social, Rio de
Janeiro: UFRJ/PPGESS. vol.1, n.1, 1o. Semestre, p. 49-74, 1997.

BANIWA, Gersem. O território indígena. Entrevista concedida a Rubens Lopes, em 17.06.2016. http://www.youtube.com/watch?v=svrUf6f1w5E Acesso em 31.07.2016

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DUSSEL, Enrique. 1492 : o encobrimento do outro : a origem do mito da modernidade, conferencias de Frankfurt/Enrique Dussel ; tradução de Jaime A. Classen. Petrópolis: Vozes, 1993.

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ZIMMERMMANN, Roque. América Latina o não-ser : uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976) /Roque Zimmermann. Petrópolis: Vozes, 1987

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