Eu chorei por Cecil

Elaine Tavares *

Sim, eu chorei. Chorei pelo tal leão que o dentista estadunidense matou na África. Chorei também pelo dentista, que precisa investir milhares de dólares para ter uma sensação de poder. Chorei pelo leão, como choro pelos palestinos, pelos meninos negros de Serra Leoa, pelos jovens da Guiné, as mulheres do Saharauí, os ciganos, os indígenas de Mato Grosso do Sul, os garotinhos negros das comunidades empobrecidas das grandes cidades brasileiras. Toda essa gente, e muito mais, que é abatida, cotidianamente, por seres como esse homem dos Estados Unidos. Chorei pelo leão, na sua inocência selvagem, entregue ao predador. Choro pelas gentes, violentadas e violadas na sua dignidade e na sua tentativa de simplesmente viver.

Mas, diante destes fatos, que envolvem a vida de bichos e gentes, não basta chorar. Nossas lágrimas não mudam as coisas que já são. O que muda é nossa ação concreta, cotidiana e sistemática. A luta incessante contra um sistema que nos ensina a banalizar a vida. A batalha sem trégua que temos de dar para constituir outro modo de organizar a vida. E isso não é coisa fácil. Muito mais fácil chorar e dormir achando que já fez o suficiente. Mera musculação de consciência.

Sim, a vida do leão é importante, porque ela faz parte do grande equilíbrio cósmico. Ela também enchia de orgulho e autoestima toda uma gente que quase nada tem. Porque quem tem a savana africana como território ancestral sabe que aquele animal, como todos os outros que por ali são protegidos, mantém o mundo deles balanceado. Ali, o homem respeita o bicho e o bicho cumpre seu destino.

Da mesma forma é importante a vida das gentes, em todos os rincões da terra, porque são expressões desse universo mágico e inescrutável. Bicho e gente, gente e bicho, balançando no pêndulo da existência e com direito de viver em paz. O leão precisa existir não para alegrar meus olhos, mas porque há uma razão para que ele exista na natureza: equilíbrio. E, naquela parte da África, eles estão sendo exterminados, até que sua ausência extermine também o homem, porque são um.

E assim é também no sistema político. Os predadores - os que têm as riquezas - vão exterminando os que nada têm, sob pretextos variados: comunistas, terroristas, marginais, possíveis criminosos. Tudo o que constituir ameaça ao mundo de benesses que construíram a custa dos que massacram, eles eliminam. Com a mesma alegria deslavada do matador de leão. Armados com as armas do dinheiro, do poder, eles caçam e decepam as cabeças, riso aberto na cara. Depois, levam os troféus para casa, para enfeitar a sala. É bem assim.

Por isso há que chorar sim. Chorar pelos que são sacrificados. Mas, logo depois, secar as lágrimas e sair para a batalha. O leão vivia numa reserva, aparentemente protegido, inocente, sem consciência da maldade humana. Nós, não. Nem em reservas, nem protegidos. E, conscientes. Sabemos que há homens com fuzis à espreita. E mais, temos a capacidade de, sabendo disso, nos juntar e dar combate. É a luta de classe.

Vivo por um sonho que persigo com atos concretos: um mundo de riquezas repartidas, de justiça, de vida plena, de equilíbrio entre gente, bicho e planta. Vivo e morro por isso. Um dia o condor encontrará a águia e virá o pachakuti. O tempo novo, pelas nossas mãos.

Assim, choro por Cecil, choro pelas gentes e arreganho os dentes, pronta para as batalhas.

* Elaine Tavares é jornalista.

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