Mais do que pesar, uma reflexão

Rita do Val *

"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar." Eduardo Galeano

Muitos são os aspectos semelhantes entre as culturas uruguaia e brasileira. Fronteiriços, os países dividem, além de costumes, períodos obscuros de suas histórias políticas. Ambos passaram por ditaduras duríssimas, em décadas próximas, e conquistaram sua redemocratização com apoio de jornalistas, escritores e artistas, há exatos 30 anos.

Chico Buarque, Caetano Veloso e Gal Costa estão para nós, assim como Eduardo Galeano está para os uruguaios. Sua obra mais conhecida, intitulada As veias abertas da América Latina, apresenta uma profunda análise da história do continente e explica como ocorre a exploração econômica e política de todas as nações latinas por parte, em primeiro lugar, da Europa e, em seguida, dos Estados Unidos.

Durante o regime militar uruguaio, a população enfrentou anos de censura, torturas e sequestros inexplicáveis. Toques de recolher e a inexistência do direito à greve também integravam o rol de medidas proibitivas no país. Instituído o chamado "Conselho da Nação", os governantes não eram eleitos por voto direto, mas impostos ao povo por um grupo de ex-presidentes, membros da Corte de Justiça e figuras de grande relevância no cenário político. Não bastasse a opressão histórica, os próprios cidadãos perpetuavam regimes totalitaristas como forma de controle e poder.

No Brasil, a história equiparou-se. Aglomerações, reuniões em grupo, partidos políticos de oposição, opiniões e reivindicações: tudo era proibido após o Golpe Militar de 1964. Anos depois da libertação, coincidentemente ou não, elegeram-se dois presidentes, ex-presos políticos, participantes ativos no rompimento com a ditadura e membros de partidos esquerdistas: Dilma Rousseff e "Pepe" Mujica.

Recentemente, uruguaios organizaram manifestações para fazer valer a opinião pública e a justiça. Tal como afirmam fazer os brasileiros. As trajetórias mantêm-se sempre próximas, esbarrando-se vez ou outra. Há, no entanto, uma pequena diferença: enquanto nossos vizinhos reivindicam o direito à investigação dos crimes cometidos em período ditatorial, aqui, é requerida, por uns, uma nova intervenção militar.

Ainda que de caráter inconstitucional, o pedido assusta. Independentemente de ideologias políticas e partidos de preferência, o retrocesso democrático é claro se atendido o requerimento. Levamos 30 anos até que a Comissão da Verdade identificasse e julgasse crimes da ditadura. Somos recém-nascidos em termos de votos diretos, somos principiantes na caminhada utópica a que se refere Galeano. Temos, ainda, mães sem filhos e filhos sem pais, todos desaparecidos ou mortos nos idos anos 60, 70 e 80. A ferida ainda é viva, não só no País, mas nos corpos daqueles que lutaram pela liberdade.

A todos os cidadãos, que o falecimento de Eduardo Galeano não permita a morte da mensagem deixada em seus textos. Mais do que pesar, que o momento nos sirva de muita reflexão, sobre a sociedade em que vivemos e aquela que queremos deixar aos nossos sucessores.

* Rita do Val é jurista e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM)

Fonte: Faculdade Santa Marcelina

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