Ariano Suassuna faz de sua obra uma eternidade e nela vive para sempre

Jaime C. Patias *

Quando morre alguém de notoriedade como Ariano Suassuna, os noticiários normalmente anunciam o fato como uma tragédia terrível. As manchetes são aquelas de sempre: "O Brasil fica mais pobre". "O povo chora uma perda irreparável...". "O mundo perde um dos maiores escritores....", e assim por diante.

O escritor paraibano, Ariano Suassuna entrou para a eternidade, no dia 23 de julho, menos de uma semana após o falecimento do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (dia 18) e do mineiro Rubem Alves (dia 19).
Será a morte uma tragédia? Um triste fim de festa? Algo terrível a ser temido durante a vida toda? Que sabemos nós sobre o mistério da vida e da morte?

Autor do "Romance d'A Pedra do Reino" e de clássicos do teatro nacional como "O Auto da Compadecida" e "O Santo e a Porca" e imortal da ABL (Academia Brasileira de Letras), Ariano Suassuna, deixa um vasto legado de sabedoria e ensinamentos que nos fazem pensar no essencial da vida. Com seus 87 anos, ele nos ensina a encarar a morte com serenidade.

Diante da ideologia do mercado que, em uma inversão de valores privilegia o efêmero, o material, o passageiro, a morte é como um triste fim de festa, um horror. O mercado causa morte e depois tem medo dela. Pessoas como Ariano Suassuna edificam a vida e mostram o que realmente importa ao ser humano.

Em sua obra que é a extensão de sua própria vida, Suassuna se concentra no verdadeiro tesouro, o que não passa, conforme podemos ler em algumas das suas afirmações.
"Não me preocupo muito em ter ou não uma posição como artista. Literatura para mim não é mercado. É a minha festa, é onde eu me realizo. Digo sempre: arte é missão, vocação e festa. Não me venham com essa história de mercado".

Marx afirmou que, à primeira vista, a sociedade capitalista aparece como uma "imensa coleção de mercadorias". Parafraseando Marx, o ativista francês, Guy Debord (1931-1994), argumentou que "toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (A Sociedade do Espetáculo, 1997, p.13).

Debord esclarece que, na sociedade do espetáculo a vida real é pobre e fragmentária, onde os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real e onde a lógica do intercâmbio mercantil atinge toda a vida cotidiana. É assim que, numa economia mercantil-espetacular, a produção alienada vem juntar-se ao consumo alienado. Para Debord, a modernidade é a sociedade do espetáculo. Precisa de estrelas como modelos para, associados a elas vender produtos de consumo e estilos de vida, tendências e modas colocando em segundo plano os valores duradouros.

Era exatamente contra essa tendência que Ariano Suassuna resistia. Em outro pensamento, o escritor retrata com precisão o que pensava das "estrelas" fabricadas pela indústria cultural.
"Acho Melville, por exemplo, extraordinário. Agora, Madonna e Michael Jackson são muito burros, limitados, medíocres. É ofensivo dizer que representam a cultura americana".

Suassuna tem razão. Somos de fato ignorantes e pobres quando endeusamos somente o que vem de fora aceitando complacentes o que o mercado apresenta como importante. Assim, deixamos de valorizar a cultura local, da periferia, os nossos escritores e produções artísticas.
O escritor não entendia como, em um país tão diversificado como o Brasil, as produções televisivas, em especial as telenovelas, pretendiam nivelar todos os sotaques impondo uma única maneira de se expressar.
"A novela não tem nada a ver. Que língua é aquela que eles falam? Você está no meio de nordestinos aqui. Já ouviu um de nós falar daquele jeito? Aquilo não é fala, é miado de gato".

O mundo é multiétnico, pluricultural e inter-religioso, mas o sistema espetacular e globalizado nivela tudo negando a diversidade. Suassuna soube como ninguém conjugar a cultura erudita e universal com a cultura popular local. Isso demonstra o grau de maturidade de um escritor e dramaturgo.

"A verdadeira universalidade respeita as singularidades locais. Todos entram com sua parte, compondo a vasta sinfonia da cultura. Ela é feita de contrastes, que não são contrários, mas complementares. Do jeito como está proposta, a globalização é apenas a prevalência de uma cultura única, a norte-americana, sobre todas as outras".

Cultura popular pode ser definida como qualquer manifestação cultural em que o povo produz e participa de forma ativa. Ao contrário da cultura de elite, a cultura popular surge das tradições e costumes e é transmitida de geração para geração, principalmente, de forma oral. As expressões da cultura podem ser utilizadas para organizar e transformar a sociedade.

Na visão do geógrafo baiano, Milton Santos (1926 -2001), a partir de um olhar próprio e colocando em relevo o cotidiano das periferias, geográficas e existenciais, a cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos "de baixo" e consegue contrapor a cultura de massa. A condição básica para a cultura é que seu agente seja um sujeito, um ser consciente no mundo e com o mundo.

A sociedade do espetáculo transforma o ser humano em mero espectador. Hoje, a ditadura do "pensamento único" capitalista e neoliberal pretende dominar e controlar a cultura, a economia, a política, a religião, os meios de comunicação e os recursos naturais. Com muita frequência, somos obrigados a obedecer às regras totalitárias do mercado que nos tiram a liberdade e não favorecem a democracia. 

Arte e cultura não são pura contemplação, mas ações inevitavelmente políticas e devem educar, informar, questionar, organizar e influenciar. Além de revelar as forças dominantes da sociedade do espetáculo, a cultura, pelo seu poder criativo e questionador, carrega em si uma força de transformação.

Por isso, não é a morte que vai apagar a grandeza de Ariano Suassuna e sua obra. Para quem concebe a morte como parte integrante da vida ela não é um castigo ou uma tragédia, mas passagem serena para a eternidade.
"Não tenho medo (da morte). Só tenho medo de morrer sem terminar um livro que eu esteja escrevendo; e não ter uma morte limpa. Eu quero pelo menos uma morte limpa."

Vista como algo terrível e trágico pela sociedade do espetáculo, a morte na vida de Suassuna foi limpa e leve. Nós vivemos até o dia em que morre a última pessoa que se lembra de nós. Suassuna fez de sua obra uma eternidade e nela viverá para sempre. Na arte cumpriu sua missão e vocação neste mundo como um dom e uma graça. Como em toda a sua obra, também na morte o escritor mostra a supremacia do essencial sobre o secundário e efêmero.

* Jaime Carlos Patias, imc, mestre em comunicação e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Secretário nacional da Pontifícia União Missionária.

Fonte: www.pom.org.br

Deixe uma resposta

treze − oito =