O futebol e a cidadania

Alfredo J. Gonçalves *

No clima da Copa do Mundo, podemos tomar o futebol como alegoria no sentido de tecer algumas considerações sobre o conceito de cidadania. Desdobrando a alegoria, digamos que o estádio se confunde com o Estado ou nação, o espaço retangular do campo representa o conjunto das instâncias decisórias de uma democracia, onde se tomam as decisões conforme as circunstâncias da partida e conforme o jogo de forças. A bola, em seu itenerário sempre imprevisível e sinuoso, tendo como meta o gol, simboliza a política econômica, em seus progetos e programas públicos a serem alcançados. Sobre o espaço do gramado, os jogadores figuram como os políticos, partidos e coligações em ação, tentando responder às expectativas do povo/plateia.

Nas arquibancadas, a população/torcida exprime sua euforia ou desilusão, anseios e esperanças. Torce, aplaude, grita, vaia, chora, canta, agita a faixa, ergue a bandeira... de acordo com o desempenho dos jogadores e com o placar. Os números da derrota ou da vitória oscilam ora para um lado, ora para o outro, determinando o humor da multidão dividida pelas cores dos times em disputa. Mediadores entre os interesses diferentes e contraditórios do país/estádio, estão os poderes da União: legislativo, executivo e judiciário. Este último, em especial, na qualidade de juiz da partida, representa a instância máxima a quem apelar em caso de divergência ou desentedimento. Mas, no fim das contas, tudo deve reger-se não pelas inclinações do árbitro ou auxiliares em questão, e sim pelas regras do jogo, vale dizer a Constituição Nacional.

Como toda a alegoria, porém, o futebol comporta boa dose de ambiguidade. Se, de um lado, ajuda a entender o funcionamento de uma democracia, de outro, é um esporte dividido entre os atores em campo, e os espectadores fora do campo. Passivos estes, ativos aqueles! Como num teatro ampliado, a ação se desenrola entre, de um lado, um palco iluminado onde as pessoas falam, gesticulam e se movimentam e, de outro, uma massa escura, imóvel e silenciosa. E aqui, do ponto de vista da alegoria democrática, surge um primeiro desafio: como fazer com que o resultado do jogo não dependa unicamente dos atores/jogadores sobre o tapete verde, mas de toda a plateia envolvida no desenrolar dos acontecimento? Como fazê-la passar do simples aplauso ou vaia a uma participação consciente e responsável?

A palavra cheve é o exercício da cidadania! Esta, quando levada a sério, exige um salto qualitativo da democracia representativa a uma democracia mais direta e participativa. Em termos concretos, como fazer com que os espectadores, em número cada vez maior, desçam das arquibancadas, entrem em campo, tomem posse da bola e se envolvam no jogo, interferindo nas decisões e no resultado final da partida, vale dizer, nos destinos da nação? Como fazer com que o cidadão não seja pura e simplesmente uma marionete do jogo eleitoral, definido de antemão por quem dispõe de riqueza e poder, mas tenha participação ativa em todo o percurso do processo? Numa palavra, como fazer com que a democracia não se reduza à sua mera "liturgia ritual e exteriorizada", isto é, as palavras de ordem, ao desfile de bandeiras, ou à urna e ao voto?

Perguntas incômodas que alargam o leque da prática efetiva da cidadania. Esta, para ser verdadeira, requer a formação de novos canais de participaçao popular, como os conselhos de saúde, educação, transportes, desenvolvimento, reforma agrária e agrícola... Novos mecanismos de tomada de decisões, como consultas, assembleias e plebiscitos populares... Novos instrumentos de controle do orçamento público e da prática política, como auditorias independentes, imprensa sem rabo preso e liberdade de pensamento. Tais canais, mecanismos e instrumentos têm como tarefa primordial definir a posse de bola. Se esta, como vimos, simboliza a política dos projetos e programas a ser levados em conta para chegar à meta/gol, é preciso garantir que todos tenham oportunidade de um toque, um pontapé, um passe, um pelo menos, por menor que seja. A posse de bola não pode ser monopólio de um só time. Aplicadando a alegoria ao exercício da democracia, porém, a posse de bola tampouco pode ser monopólio dos jogadores. Os espectadores devem ser convidados a entrar no jogo. No limite, são eles que devem driblar no dia-a-dia a fome e a pobreza, a miséria e o desemprego, a doença e a falta de moradia, o preço do aluguel, água, luz... Enfim a luta nada fácil pela sobrevivência!

A história das democracias ocidentais tem se limitado, quase exclusivamente, às campanhas eleitorais e ao sufrágio universal, que termina na boca da urna com o voto secreto. Isso não basta! Não basta essa brisa leve que apenas agita as ondas superficiais do política visível a olho nu. O salto qualitativo deve descer às correntes subterrâneas, onde se jogam os interesses do mercado, da economia globalizada e, em consequência, da política econômica. Sem esse mergulho, não podemos falar de uma cidadania efetiva. As políticas públicas, para evitar que se reduzam a políticas compensatórias ou eternamente provisórias, devem contar com o debate amplo, livre e plural dos cidadãos. O projeto de nação, para evitar que se converta em projeto de um partido, facção, oligarquia ou coligação, deve ser discutido nas mais varias instâncias, movimentos, organizações e instituições da sociedade civil. Todo o estádio/nação passa a fazer parte do jogo, embora em graus diferentes de ação e decisão.

A bola deve rolar! Rolar por todo campo, mas também envolver as arquibancadas. Melhor ainda se não existisse essa divisão entre gramado e arquibancadas, jogadores e plateia. Só assim poder-se-ia costurar uma rede de participação sem fronteiras, inclusiva. Na democracia, os torcedores podem e devem tornar-se jogadores. E estes, quando não dão conta das adversidades, podem e devem abandonar o campo, cedendo o posto a outros. O esforço para driblar os entraves históricos e estruturais que o país protela há décadas (para não dizer séculos), bem como o combate à corrupção e ao mau uso dos bens e do poder público exige o envolvimento de todos. Não bastam os vinte e dois jogadores, não bastam os tecnocratas do governo, os representantes do judiciário e os políticos Congresso Nacional. O rumo desta imensa nave que é o Brasil depende da ação consciente de todos seus passageiros, caso contrário encalha nos interesses de uma minoria.

A bola deve rolar! Rolar livre e solta para que cada cidadão tenha a oportunidade de mostrar seus talentos. Não podemos nos contentar com o jogo das elites ou dos poderosos que habitam o andar superior da pirâmide. Quem teme mudanças, joga na calada da noite, nos labirintos escuros, tortuosos e subterrâneos da política. Mudar de fato, e mudar substancialmente, requer um jogo aberto e à luz do dia, transparente, com todos os holofotes acesos, câmeras e microfones ligados. Quem nada tem a esconder não teme a luz do sol. Só os ratos procuram os lugares mais ocultos quando o brilho de seus raios se espalha pelos porões da política suja e corrupta. A bola está em campo e está com os cidadãos de todo território nacional. O placar depende do empenho de cada um e da organização de todos!

Roma, Itália, 05 de maio de 2014

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos, em Roma.

Fonte: Revista Missões

Deixe uma resposta

4 × 2 =