Mocinhos e bandidos na guerra da Líbia

Luiz Eça *

Os papéis de mocinho e bandido no drama da Líbia já foram distribuídos pela imprensa mundial e pelos líderes do Ocidente. Mas, como não se trata de uma superprodução de Hollywood, eles não parecem bem definidos.

Comecemos analisando aquele apontado como vilão mor, o coronel Kadafi. De cara, um dado incongruente com o papel: seu governo até que ia bem. Afinal, a Líbia apresenta um IDH (índice que mede a qualidade de vida de um país) melhor do que o Brasil (53º contra 72º), como também seu PIB per capita (13.100 dólares contra 10.000) e mesmo seu índice de pobreza (7,4%).

E a Líbia vive uma fase de intenso crescimento: 10% no ano passado. Mas, como não é só do pão que vive o homem, sobram motivos para o povo revoltar-se contra Kadafi.

É um tirano feroz, no estilo dos antigos filmes americanos sobre árabes (aqueles com John Hall e Maria Montez). Impôs um regime de opressão, criminalizando a oposição, negando as liberdades e servindo-se do tesouro público como coisa sua, para torrar fortunas em luxos típicos das mil e uma noites.

Depois de 41 anos sem grandes contestações, explodiram grandes manifestações populares contra o governo e Kadafi reagiu com violência. Por sua ordem, as forças de segurança atiraram no povo, matando cerca de 200 pessoas.

Diante da rebelião que se seguiu, com o povo armando-se e, aliado a soldados que haviam desertado, tomando o controle de Benghazi, o ditador não fez por menos.

Ameaçou mandar seus aviões bombardearem a cidade rebelde, o que deixaria seu milhão de habitantes em situação de alto risco, pois não dispunham de aviação para protegê-los.

Não contente, proferiu uma seqüência de ameaças e xingamentos digna dos mais ferozes vilões hollywoodianos: "quem não ama Kadafi não merece viver", os rebeldes são "ratos", "vou fazer rolar um rio de sangue", "limpar Benghazi de casa em casa".

É verdade que também falou em perdoar os que se rendessem e tomou como alvo dos seus dardos verbais especialmente aqueles que o tinham abandonado. Chocada com esse quadro, a ONU, para impedir o bombardeio e conseqüente massacre da população, decretou os céus de Benghazi zona de exclusão aérea. Estados Unidos, França e Grã-Bretanha foram além: passaram a atacar também alvos governistas em terra, alegando razões humanitárias: Kadafi perdera sua legitimidade ao atirar no povo.

Mas, surge uma questão: e o Bahrein? No Bahrein, monarquia absolutista, cujo ministério é formado totalmente por membros da família reinante, as forças do governo, reforçadas por 2.000 soldados sauditas com tanques, também enfrentaram manifestações populares de protesto atirando no povo e matando muita gente. Como agravante, ocuparam os hospitais e impediram que rebeldes feridos fossem socorridos.

Sendo os governos da Líbia e do Bahrein ditaduras muito semelhantes, que enfrentam rebeliões populares de forma igualmente semelhante, a pergunta que se faz é: por que os EUA e aliados usam de dois pesos e duas medidas, intervindo militarmente na Líbia e limitando-se a pedir "moderação" ao monarca bareinita?

O almirante Michael Mullen, chefe do Estado-Maior conjunto das forças americanas, responde: "É diferente... O Bahrein tem sido um crucial aliado por décadas". Inclusive, permitindo que lá ficasse fundeada a 5ª. Frota dos EUA, com os canhões apontados para o vizinho Irã.

Já Kadafi só se submetera à Pax Americana depois de 2003. Quando então, depois de três décadas de malquerenças e conflitos, passou a colaborar na ‘Guerra ao Terror' e trocar gentilezas com a Casa Branca.

Se, desse modo, o "argumento humanitário" perde força, que outras razões poderiam existir para justificar o delenda Kadafi? Quem sabe algo não tão nobre, no terreno dos "interesses"...

Antes da intervenção, os chefes dos governos dos Estados Unidos, França e Inglaterra estavam em baixa junto ao eleitorado. Obama vinha de uma massacrante derrota nas eleições legislativas de novembro último.

Nas eleições cantonais da França, Sarkozy perdeu para os socialistas, por larga margem: 49,9% x 35,9%. E nas últimas pesquisas inglesas o Partido Conservador do primeiro-ministro Cameron ficou atrás do Partido Trabalhista: 41% x 35%.

Sabe-se que nada une mais um povo em torno do seu governante do que uma guerra externa. Mas os três líderes não devem ter mirado apenas seus públicos internos quando decidiram agir. Todos eles não são exatamente sucessos de público no mundo árabe pelo apoio dos governos dos seus países a Israel e aos regimes despóticos do Oriente Médio. Os EUA especialmente, conforme, aliás, mostrou pesquisa realizada em toda a região pelo Brooking Institute, na qual nada menos do que 77% dos respondentes consideraram o país de Obama a maior ameaça à paz.

Pegar carona na onda das revoluções populares árabes, integrando-se decisivamente num movimento contra um tirano mal amado pelos povos do Oriente Médio (como é Kadafi), é um modo eficiente para ganhar pontos na região.

Mas, sob o ponto de vista do interesse dos três países que lideram os ataques, sairão eles ganhando com uma vitória provável dos rebeldes? Há indícios de que entre eles há tanto "mocinhos" quanto "bandidos".

A esse respeito, diz James Traub, em Foreign Policy: "Vocês devem lembrar a última vez que os EUA e aliados destronaram um odiado ditador árabe. O vácuo resultante foi rapidamente preenchido por saques anárquicos, rivalidades assassinas e, ultimamente, guerra civil".

Um dos mais poderosos grupos da oposição é integrado por adeptos de um príncipe da dinastia Senussi, que reinou na Líbia até o golpe militar que levou Kadafi ao poder. Seu principal líder é Mahmoud Gebril El Warfally, que preside o Conselho Nacional de Transição, formalmente, a entidade que une as forças rebeldes. Figura de destaque no governo de Kadafi e neoliberal.

Convicto, foi o homem chave na penetração na Líbia dos interesses econômicos dos EUA e da Grã-Bretanha. Tudo indica que, assumindo o governo, o cobiçado petróleo líbio cairá nas mãos das empresas ocidentais.

Mas esse happy end ao gosto de Londres e Washington pode não se concretizar se gente diferente ganhar a parada. Michael Scheuer, ex-chefe da unidade anti-Bin Laden da CIA, acha que grande parte dos rebeldes é constituída por antigos combatentes islâmicos das guerras do Iraque e do Afeganistão, adversos a Kadafi, que sempre perseguiu seu time.

Por sua vez, segundo diz David Wood, no Huffington Post, documentos apreendidos no Iraque em 2007 mostram que 1 em cada 5 dos guerrilheiros estrangeiros anti-americanos vinha do leste da Líbia, a região cujo povo apóia em massa a revolução.

E o Wall Street Journal revelou que as facções islâmicas deliberadamente se mantêm fora de foco, mas "...assumiram postos-chaves no movimento rebelde para derrubar o coronel Kadafi".

Tudo isso é confirmado por Hakim Al-Hasidi, um dos principais comandantes rebeldes, em entrevista ao jornal italiano Il Sole 24 Ore. Ele conta ter recrutado muitos mujahedins, inclusive membros da Al Qaeda, que, para ele, não seriam terroristas, mas sim, bons muçulmanos. E admite que lutou contra a invasão estrangeira no Afeganistão. Posteriormente, foi capturado no Paquistão e enviado primeiro aos EUA e depois à Líbia, onde permaneceu preso até ser libertado em 2008.

Fontes americanas e inglesas informaram que Hasidi foi membro do Grupo Guerreiro Líbio Islâmico, rotulado como terrorista pelo Departamento de Estado, que matou dezenas de soldados líbios em 1995 e 1996.

Não tem um passado que o torne digno de tomar chá com Hillary Clinton. Nem se pode imaginar que ele e o pessoal da dinastia Senussi e do neoliberal Mahmoud Gebril possam vir a repartir o poder amigavelmente.

Muitos tiros ainda serão disparados neste drama da Líbia, que não deve acabar nem com o fim do reinado do coronel Kadafi.

* Luiz Eça é jornalista.

Fonte: www.correiocidadania.com.br

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