A Democracia sangra

Humberto Dantas *

Assassinar um defensor da Democracia é esquartejar o caráter de um povo.

Democracia não se constrói apenas com regras escritas. Longe disso, pois como prega o ditado: o papel aceita tudo. Democracia se consolida no cotidiano, no respeito às leis conhecidas, respeitadas e defendidas por todos, no exercício diário da tolerância. Democracia é um valor que molda o caráter de um povo. Democracia se pratica com gestos relacionais que não envolvem apenas os políticos, mas todos nós.

Em meio à ignorância política de seu povo, diante do afastamento e desconhecimento de direitos essenciais e de uma cultura pouco democrática detectada em diversas pesquisas nacionais e internacionais existe um país chamado Brasil. Nesta nação vivem sujeitos que ainda precisam pregar a Democracia em pleno século XXI. Eu me considerava um desses indivíduos. Mais de 150 turmas formadas em cursos de educação política, colunas em jornais e revistas estimulando o envolvimento cidadão, rádio e TV em larga escala, quatro livros tratando do assunto, milhares de horas de aula em graduação, pós-graduação e palestras, muitas palestras. Foi quando conheci o Tocantins. Muitos chamavam de fim de mundo, outros de terra de ninguém. Nada disso. Povo hospitaleiro, mistura de brasileiros dos mais diferentes estados, vontade de crescer. Fui à universidade, falei no SEBRAE, conheci prefeitos, apertei a mão de dois governadores, lancei livros e participei de eventos sociais. E foi nesse último que percebi como sou pequeno. Dom Heriberto Hermes é muito mais ousado. Forma para os Direitos Humanos, educa politicamente, desafia as autoridades, vai além dos limites da coragem. Coragem? Isso combina com Democracia? Definitivamente não.

Na segunda-feira dia 28 de fevereiro encontrei uma mensagem de Dom Heriberto em minha caixa de e-mail que dizimou meu desejo de acreditar na Democracia. Na porta de uma fazenda um corpo jazia com marcas de torturas. Ali estava Sebastião Bezerra da Silva, mais de 1,90 metros de altura que me faziam pequeno. Não tanto pelo meu 1,73 metros, mas principalmente pela grandeza de seu caráter, pela envergadura de suas ações em benefício da Democracia, pelo trabalho incansável no Centro de Direitos Humanos de Cristalândia ao lado de Dom Heriberto, amparado pelo desejo de a Igreja lutar por justiça social.

Sebastião era um homem que vivia desconfiado daqueles que não acreditam na cidadania, nos direitos humanos, nas leis e no Estado. Diante desse inimigo, vivia assombrado por algo que não tem uma única face. Gente assim existe em qualquer lugar. Entre os bandidos, empresários, policiais e políticos. Dentro de nossa própria casa. Sebastião foi assassinado pela distância abissal existente entre seu sonho por um mundo melhor e a crença absolutista e bizarra daqueles que desafiam a lei, duvidam da cidadania, afrontam a própria sociedade. Com Sebastião foi enterrada uma parte da Democracia. Para muitos uma parte pequena, mas para quem visualizou o tamanho de seu trabalho, o Brasil deveria respeitar um luto profundo, por aquele que partiu e por aquela que talvez nunca tenha nascido: a Democracia.

* Humberto Dantas é doutor em ciência política pela USP, professor universitário e responsável por ações suprapartidárias de educação política que já formaram mais de 100 turmas desde 2003. Articulista da revista Missões sobre temas de cidadania, direitos humanos, fé e política.

Fonte: Revista Missões

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