Barradas no Aeroporto: O limbo da falta de direitos

Sidnei Marco Dornelas CS

Recentemente uma brasileira que viajava à Espanha a passeio, com estadia paga, passagem de volta, dinheiro suficiente para justificar sua viagem de turismo, se viu barrada pela polícia espanhola no aeroporto e obrigada a retornar ao país. Trata-se da Prof. Denise Severo, Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da UnB, Coordenadora Pedagógica do Projeto Vidas Paralelas, ligado ao Ministério da Cultura. Seria um caso a mais, que passaria despercebido entre tantos outros que são impedidos de entrar na Comunidade Européia, se ela, com a formação acadêmica que tem e as relações que mantém, não manifestasse publicamente seu protesto contra a injustiça e arbitrariedade que havia sofrido. Lançou uma carta aberta que circulou amplamente na rede (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/a-pesquisadora-que-foi-expulsa-da-espanha.html) e foi objeto de debate na lista de discussão do NIEM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios).

Esse fato lembra outro similar ocorrido há alguns anos envolvendo uma brasileira estudante de Física que se dirigia a um Congresso em Lisboa, Portugal, e deveria fazer uma escala em Madri. Ficou ali presa por 53 horas e enviada de volta ao Brasil. Na ocasião, o fato foi amplamente divulgado não só na Internet, nos meios acadêmicos, mas também na grande imprensa, levando a uma onda de protestos que obrigou os governos brasileiro e espanhol a se pronunciarem sobre o assunto.

Na verdade, nada substancial mudou desde então. Entre as mensagens veiculadas a partir do caso de Denise, existe a de Edineia da Silva Cabioch, do NEBE- Núcleo de Entidades Brasil España, em que informa os números crescentes de brasileiros que são barrados na chegada a Espanha: "Em 2006, a média de inadmissão de brasileiros ficava em torno de 20 por mês, e em 2007 subiu para mais de 200 por mês (2.764 /ano) e até fevereiro de 2008, por exemplo, os dados fornecidos pela Espanha ao Consulado apontavam 536 inadmitidos, chegando a 2,5 mil brasileiros impedidos de entrar no país pela capital espanhola durante o ano" ... "Dados da Frontex (Agência Européia de Controle de Fronteiras) mostram que, no primeiro trimestre de 2010, os brasileiros foram os mais barrados em aeroportos da Europa. Em 2010 segundo a agência, 25.400 estrangeiros tiveram entrada rejeitada entre janeiro e março - número menor que o de trimestres anteriores, provavelmente pela crise na zona do euro. Deles, 1.842 eram brasileiros - 6,3% a mais que no final de 2009." O número de brasileiros barrados seria menor apenas que o de ucranianos. Edinéia procura prestar um serviço, veiculando um modelo de carta-convite a ser apresentada às autoridades espanholas nos procedimentos para a preparação da viagem, a fim de evitar e prevenir um incidente como o que envolveu a Prof. Denise.

Várias outras mensagens mostraram solidariedade com Denise, perplexidade e protestos veementes, juntando-se à principal acusação feita por ela em sua carta aberta: "é XENOFOBIA PURA!!!! Mas XENOFOBIA CONTRA LATINOS E NEGROS!!!! PURO PRECONCEITO!!!" Outras lembraram casos parecidos, como o que teria ocorrido com o cantor e compositor Guinga. Enfim, esse caso criou também o ensejo para outros comentários e debates, como a questão do tráfico de pessoas e da prostituição de brasileiras na Espanha, sugerindo que por trás deste caso estaria o preconceito da polícia de fronteira espanhola, em que predominaria o estereótipo de que toda brasileira seria uma estrangeira candidata a prostituição na Espanha.

A mim, esse caso desperta um arco mais amplo de reflexões. Para além daqueles que se indignam que seja preciso que uma mulher prestigiada academicamente passe por isso para que o tema do tráfico venha a público, penso que ele revela as violências e arbitrariedades bem mais banalizadas que todos migrantes vivenciam, e passam despercebidas aos olhares indiferentes e bem pensantes da sociedade nacional (não importa qual seja). Lembra-me uma palestra proferida pelo Prof. José de Souza Martins em 2003, num Seminário realizado em Roma1, em que relatava suas peripécias em aeroportos europeus e norte-americanos, em que sempre encontrava dificuldades para convencer policiais e funcionários de que não era um árabe disfarçado (seu fenótipo era muito suspeito) mas um professor respeitado com diversas passagens por universidades européias. Citava ainda muitos outros casos de discriminação e da ação arbitrária que testemunhou em que pequenos funcionários exerciam seu poder discricionário e decretavam quem podiam entrar ou não no país, a partir daquele recinto do aeroporto. São na verdade o único poder válido nesse não-lugar existente entre a saída do avião e a porta de saída do aeroporto:
"O corpo de funcionários que nos recebem nos aeroportos desses países é o responsável pelas primeiras interações na sociedade a que o passageiro chega. Eles nos fazem as primeiras revelações de como o oriundo será recebido pelas pessoas comuns, na teia cotidiana de relacionamentos sociais marcada pela desigualdade de direitos.
Somos todos suspeitos no momento do desembarque. E suspeitos sem direitos. A partir do momento do pouso de um avião até o momento de receber no passaporte o carimbo da autoridade portuária, juridicamente nenhum de nós existe. "De fato, estamos em lugar nenhum, sem direitos, sem possibilidade de apelação a quem quer que sej, em caso de que isso seja necessário".

O não-lugar da travessia do migrante se encontra nos saguões de aeroportos e alfândegas, existe fisicamente nos espaços da fronteira, ou nos caminhos que o conduzem para lá. Esse não-lugar implica numa condição humana real, vivida por pessoas reais, perfeitamente observáveis por todos. Mas é juridicamente invisível, porque está no espaço apátrida entre os Estados-Nação, que ainda são à base de qualquer aplicação de direitos. Nesse espaço só vale a opinião do pequeno funcionário fardado, munido de um carimbo ou de uma metralhadora.

A experiência da Prof. Denise traz a tona aquilo que é moeda corrente para milhares de migrantes pobres em todo mundo. É o mundo das sombras da globalização: dos centro-americanos e mexicanos que atravessam longos caminhos pelo México ou pelo deserto norte-americano, à mercê da polícia fronteiriça, do poder de vida e morte de qualquer traficante, da inclemência do tempo e da fome; dos milhares de africanos que atravessam desertos e mares, sob condições desumanas, morrendo ou sendo aprisionados em centros de detenção e de albergamento; dos apátridas e deportados, que não se cansam de buscar uma nova chance para realizar essa travessia; é também o mundo dos milhares de abrigados em campos de refugiados nas fronteiras de países conflagrados na África e na Ásia. O não-lugar dos migrantes é o território da arbitrariedade dos mais fortes, do limbo entre os Estados-Nação, em que os direitos fundamentais de qualquer ser humano estão submetidos ao julgamento do pequeno funcionário de plantão na porta de saída ou de entrada de qualquer aeroporto.

Não é só uma questão de se indignar e prestar solidariedade à Prof. Denise. Nem apenas denunciar o preconceito das autoridades do Aeroporto de Barajas contra as mulheres brasileiras. Não há como não deixar de fazê-lo. Porém, talvez seja hora de acordar para a verdadeira realidade em que vivem milhares de migrantes que transitam em busca de uma vida melhor. Uma realidade da mobilidade oculta pelas luzes enganadoras do turismo internacional, que a própria Espanha esmera por fazer brilhar.

* Sidnei Marco Dornelas CS, assessor Setor Mobilidade Humana - CNBB

1MARTINS, José de Souza, "Segurança Nacional e insegurança trabalhista: os migrantes na encruzilhada". Exposição feita no Seminário promovido pela Fondazione Scalabrini, Roma, 28 de novembro de 2003. Publicado em Caderno de Direito - FESO, ano V, n. 7, Fundação Educacional Serra dos Órgãos, Teresópolis, 2º sem/2004, pp. 113-127.

Fonte: Setor Mobilidade Humana - CNBB

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