Fóruns Sociais: o que mudou e o que falta

Antonio Martins

Numa primeira avaliação do FSM-2010, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos destaca reemergência dos sindicatos, incorporação de cosmovisões não-ocidentais e presença de Lula. Mas insiste na importância de articular lutas comuns e vê possível saída na Assembleia dos Movimentos Sociais.

Dois grandes eventos - um na Grande Porto Alegre, outro em Salvador - reuniram em conjunto cerca de 30 mil pessoas e abriram, no final de janeiro, a longa jornada do Fórum Social Mundial em 2010. Novamente inovador no formato, o encontro global das alternativas irá se desdobrar, ao longo do ano, em cerca de 40 eventos, em 22 paísesi. Haverá eventos marcantes, como um Fórum Social Europeu na Turquia; um Fórum Temático sobre Alternativas à Crise Financeira (Cidade do México); o II Fórum Social Norte-Americano e pelo menos nove atividades destacadas no mundo árabe - entre elas, o I Fórum Social Iraquiano e Fóruns Temáticos sobre Democracia (Bangladesh), Questões de Gênero (Jordânia), Trabalhadores Rurais (Egito) e Educação (Palestina).

A dúvida, porém, é: esta diversidade de eventos vem acompanhada de inovações práticas e teóricas no processo do Fórum Social Mundial. Ou seja: além de multiplicar encontros, o altermundismo está sendo capaz de renovar a si mesmo e tornar-se ainda mais efetivo na construção do pós-capitalismo?

Poucos intelectuais e ativistas são tão qualificados para responder a estas questões quanto o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Investigador das lutas emancipatórias há décadas, ele transformou o FSM em objeto de estudo desde a primeira edição, em 2001. Não age como diletante ou mero observador indiferente. Em diversas ocasiões, ao longo dos dez últimos anos, participou de reuniões do Conselho Internacional do Fórum e da elaboração de sua metodologia.

Na Grande Porto Alegre-2010, a presença de Boaventura desdobrou por inúmeros temas e espaços. Ele esteve, como debatedor, no seminário "Dez anos depois", tentativa de fazer balanço e examinar as perspectivas do altermundismo. Foi o conferencista mais destacado no encontro do Fórum de Autoridades Locais das Periferias (FALP), em Canoas. Encontrou-se com o presidente Lula, minutos antes de este dirigir-se novamente ao FSM, no ginásio Gigantinho. Ajudou a definir o formato da sessão de encerramento do conjunto de atividades ligadas ao "capitulo Porto Alegre" - propondo a abertura inédita de um período para que qualquer participante pudesse pronunciar-se sobre o futuro. Poucas horas depois, Boaventura concedeu, a Terra Viva, a entrevista a seguir.

Qual sua avaliação sobre o conjunto de atividades que abriu o FSM-2010, em Porto Alegre?
Foram muito positivas, com uma única ressalva. Em Porto Alegre, a ideia de que o Fórum voltaria em nova forma causou alguma confusão. O evento principal organizado aqui - o seminário "Dez anos depois" era grande demais para ser um seminário, e pequeno demais para um fórum social. Parte da população que simpatiza com o FSM não pôde compreender o sentido de um Fórum decentralizado, que se desenvolve em cerca de quarenta atividades ao longo do ano, sendo que a de Porto Alegre é apenas a primeira.

O importante é que as atividades do seminário, realizadas nas manhãs de 26 a 29 de janeiro, tocaram pontos sensíveis e aprofundaram alguns consensos. Além disso, os avanços deram-se em áreas em que nosso pensamento ainda não está devidamente articulado: mudança civilizacional, crise do capitalismo, novos bens públicos, a importância das ideias e cosmovisões dos indígenas e afrodescendentes para a construção de um novo mundo. Faço questão de ressaltar, também, o novo papel do movimento sindical e o protagonismo dos jovens - inclusive na capacidade de realizar atividades organizadas.

Além do seminário, houve muitas outras atividades, realizadas de forma autônoma por dezenas de organizações. A grande maioria referia-se a questões internacionais destacadas ou a temas mais próprios do Brasil. Destaco, por exemplo, o encontro preparatório ao Fórum das Autoridades Locais de Periferia, em Canoas, e as iniciativas sobre o Direito à Memória, que tiveram participação Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo brasileiro. Os que pensavam que FSM tinha perdido vigor obviamento descobram-se, mais uma vez, enganados.

Finalmente, houve ocasião para tentar soluções não adotadas no passado. Refiro-me, por exemplo, ao fato de o seminário "10 anos depois" ter aberto espaço, em sua última sessão, para que qualquer das pessoas da plateia expressasse, em 3 minutos, suas aspirações e visão sobre o futuro do FSM. Esta atividade ocupou quase duas horas, com muitas intervenções, boa parte delas consistentes, articuladas, portadoras de proposições interessantes. Nesta mesma sessão, foi ótimo apresentar um panorama sobre as próximas atividades do FSM em de 2010 e permitido uma aproximação muito auspiciosa entre o Fórum e a Assembleia dos Movimentos Sociais.

Você tem destacado, há alguns anos, a presença crescente dos sindicatos no FSM. Poderia explicá-la melhor?
Os trabalhadores nunca tiveram tanta importância no FSM como agora. Nos primeiros encontros, a participação dos sindicatos foi muito limitada. O movimento sindical ainda se via como o grande movimento social, considerava suas próprias bandeiras e lutas as mais importantes. Na concepção que então prevalecia, todo o resto era muito folclórico, e os sindicatos até perdiam força e energia, ao se misturarem a certas "extravagâncias".

É preciso ressaltar que, mesmo nesta fase inicial, havia uma importante presença extra-sindical dos trabalhadores. Afinal de contas, que são as mulheres, os afrodescendentes, ou os índios, se não trabalhadores que se articulam de maneira não-tradicional? Do ponto de vista teórico, é preciso compreender que as lutas do mundo do trabalho assumem, hoje, formas muito diversas. Além das que se desenvolvem diretamente em torno das relações capital-trabalho, há outras.

Além disso, o movimento sindical sofreu mais que todos os outros, nesta década. Tanto na Europa quanto em países do Sul como a Índia - e mesmo em Estados geridos por partidos comunistas como Kerala e Bengala Ocidental, houve forte perda de postos de trabalho e desarticulação das organizações sindicais.

Ainda assim, houve, ao longo da década, uma evolução notável. Como reflexo de transformações sociais e políticas em seu interior, o movimento sindical percebeu a pujança do Fórum Social Mundial e somou-se cada vez mais a ele. Estamos vivendo o que se chama, no Brasil, de surgimento de um dos "sindicalismo de movimentos sociais". Significa incidir em outras temas que dizem respeito aos trabalhadores como moradia, saúde e educação. São questões tão importantes, para quem trabalha, quanto o que se passa no interior das fábricas. O resultado é que movimento sindical está assumindo uma posição cada vez mais importante no conjunto do FSM. Detalhe: ele entra sem nenhuma intenção de se apropriar de bandeiras ou hegemonizar o espaço. Quer dialogar de igual para igual.

Esta mudança ocorre tanto no FSM em si quanto em outros espaços políticos. Constato os novos ares nos seminários que temos realizado por iniciativa da Universidade dos Movimentos Sociais. Normalmente, os sindicalistas chegam muito convencidos de seu protagonismo, e com dificuldades de enxergar a importância de outros sujeitos. Mas esta resistência dura pouco. Rapidamente, eles percebem que fazem parte da mesma lógica de resistência ao capitalismo as lutas travadas, por exemplo, contra a contaminação da água por mineradoras, para evitar que os monocultivos inviabilizem a pequena produção camponesa, ou para assegurar direito ao saneamento.

Do ponto de vista da teoria da emancipação social há novidades?
Gosto de destacar que algumas das características essenciais do FSM é sua enorme capacidade de se reinventar; sua disposição de questionar o que ele próprio já criou, com sucesso; sua tendência a buscar o novo, inclusive em termos teóricos. Neste terreno, vejo que importantes avanços, alcançados nos últimos anos, continuaram a ser consolidados na largada de 2010.

Está se espalhando, por exemplo, o consenso de que não há apenas contradição entre o capital e o trabalho mas, também, entre capital e natureza. Não apenas o trabalho é convertido em fator de produção, mas também a natureza é transformada num recurso que se pode destruir sem nenhuma concessão à sustentabilidade, ao longo prazo ou ao direito de estabelecermos. outra relação com natureza. O movimento sindical compreende crescentemente que deve intervir nas duas questões e não apenas numa delas. E o sindicalismo tem instrumentos teóricos, oriundos da própria tradição do século 20, para se apropriar-se destes novos papeis. Refiro-me, por exemplo, à tradição teórica do ecossocialismo, que teve importância há algumas décadas e tende a recobrá-la.

Outro passo adiante é a importância dada à luta pela paz. Meses após o primeiro FSM, houve os ataques contra as "torres gêmeas" e o início, pelo governo Bush, da chamada "guerra infinita" contra o terror. O Fórum, que em sua primeiro edição não havia destacado tanto a luta pela paz, tornou-se um espaço muito importante para esta bandeira. Ela está presente em inúmeras atividades relacionadas à Palestina, ao Iraque e à tentativa de estabelecer, como diálogos entre civilizações - em clara alternativa ao "choque" previsto por certos teóricos.

Mais para o final da década - em Belém-2009 e agora em Porto Alegre-2010 -, o FSM assumiu como tema o protagonismo do movimento indígena em muitas partes da América do Sul. Era algo já expresso em processos políticos como os do Equador e Bolívia, onde resultou nas eleições dos presidentes Rafael Corrêa e Evo Morales. As bandeiras, ideias e cosmovisões deste novo sujeito estão sendo incorporadas crescentemente pelo Fórum. Trazem ao debate a idéia do "bem-viver", como alternativa ao desenvolvimento infinito, que rompe as relações entre homem, mulher e natureza.

Ficou claro, além disso, que as cosmovisões indígenas da América não são apenas uma contribuição específica ao FSM. Fazem parte de um conjunto vasto de pensamentos não-coloniais originários da África, da Índia, da própria China - como o confucionismo. Embora estes pensamentos sejam normalmente invisibilizados no Ocidente, eles revelam (e os Fóruns jogam enorme papel neste sentido) que a esmagadora maioria da população do mundo não vive segundo as regras do lucro infinito, da competição, da destruição do outro - mas segue regras de convívio social que têm por trás de si outra relação com a natureza e os bens públicos. Ou seja: não é um tema indígena, mas algo que tem muitas afinidades com as lutas ambientais. Não é à toa que diversas organizações ecologistas estão abrindo diálogos com as concepções indígenas.

Alerto que há, neste processo, um risco de folclorização, ou trivialização. Muitos assumem os novos conceitos - como "bem-viver" com moda, sem saber exatamente o que expressam. Em "bem-viver", há uma profunda dimensão de espiritualidade e religiosidade. O pensamento ocidental não é capaz de incorporar facilmente estes elementos. Ele meteu a religião no espaço privado e a transformou em opção que não tem a ver com a vida política, econômica e cultural dos povos. Segundo esta lógica, há, por exemplo, quem fale orgulhosamente em "bem-viver" e se delicie com hambúrgueres produzidos com componentes que viajam 4 mil quilômetros, antes de chegar a um sanduíche. E é impressionante como se bebe água engarrafada nos Fóruns Sociais. Ninguém articula, como alternativa, o fornecimento de água potável gratuita, símbolo dos serviços públicos que é necessário restaurar.

Como você viu a presença de Lula em Porto Alegre?

Achei muito positiva, inclusive devido ao sacrifício pessoal que o presidente fez. Os que estiveram mais próximos viriam que ele já tinha problemas de saúde, que se manifestaram com força no dia seguinte, numa crise hipertensiva.

Mas Lula superou os problemas, quando falou brilhantemente no Gigantinho. Fechou-se um ciclo; deu-se algo de simbólico, bonito em si mesmo. O PT nasceu dos movimentos sociais, mas no princípio do governo Lula tornou-se claro que o presidente precisava governar para todos os brasileiros e precisava tomar certa distância de seus aliados históricos. Por isso, foi a Davos, o que gerou algum incômodo.

Ao terminar seu mandato, contudo, Lula voltou ao Fórum Social. Reafirmou a importâncias dos movimentos e testemunhou que, apesar de certas tensões inevitáveis seu governo esteve comprometido em estabelecer um relação de diálogo permanente com eles. Isso deu-se por meio de dezenas de Conferências Nacionais, cuja convocação regular agora se quer transformar em lei.

Penso que a fala do presidente volta a colocar, para o FSM, a necessidade de debater mais aprofundadamente as relações entre movimentos, partidos e política institucional - apesar de certa resistência de algumas organizações brasileiras.

Apesar de ser, talvez, minoritário, insisto no tema. Penso que o FSM teve um enorme papel na redefinição de política ocorrida ao longo da última década. Num momento de crise do sistema partidário, os Fóruns afirmaram, com toda a razão, que os partidos não têm mais o monopólio da representação: os movimentos e organizações da sociedade civil serão cada vez mais fundamentais para a construção do futuro coletivo.

Mas, também em razão disso, alguns partidos, novos ou já existentes anteriormente, passaram a reconhecer o fim do antigo monopólio: o MAS, na Bolívia; a Aliança País, no Equador; algumas organizações na própria Europa. Estão presentes em lutas sociais, aliam-se com os movimentos, buscam novas relações.

Como responder diante desta novidade? Vamos voltar à velha ideia, segundo a qual os movimentos são temáticos e partidos, gerais? Ou tentaremos articular, por exemplo, as várias formas de democracia? Não caberia ao FSM ser espaço para este debate? Procurar combinar uma visão sobre democracias representativa, participativa e comunitária; os diferentes sujeitos que atuam em cada esfera; e como criar sinergias entre diversas formas de ação pela transformação social?

Em Porto Alegre, a Assembleia dos Movimentos Sociais tentou responder a algumas tensões antigas que percorrem os Fóruns. Definiu lutas comuns em torno de quatro eixos: resistência à militarização da América Latina, à criminalização dos movimentos sociais e à tentativa de retorno ao neoliberalismo; e luta pela adoção de uma agenda ambiental que evite o aquecimento global. Como você vê esta novidade?

Duas destas novidades tocam-me particularmente. Primeiro, o fato de a Assembleia ter frisado a importância que também têm as lutas defensivas. Ao longo das atividades em Porto Alegre, argumentei que talvez a próxima década não seja tão brilhante como a que estamos terminando, em termos de novidades e mudanças políticas positivas. Insisti em que procuremos, além de continuar buscando avanços, defender com energia as conquistas já alcançadas. Abordei, em especial, a defesa dos movimentos sociais, que encarnam a renovação da democracia. Cheguei a fazer um gesto simbólico. Dirigi-me a uma reunião do Conselho Social do Ministério Público gaúcho e pedi, com todo respeito, que arquivassem a ação que movem contra o MST.

Verifico, agora, uma coincidência. Três dos eixos de luta propostos pela Assembleia são claramente defensivos, e respondem muito bem a questões prementes do novo cenário: resistência à militarização, a criminalização e ao retorno das políticas neoliberais.

Mais: vejo como muito positiva a possibilidade desta nova articulação entre a Assembleia dos Movimentos Sociais e o conjunto do FSM. Tenho defendido que os Fóruns Sociais conservem a condição de espaços, mas que algumas organizações, de preferência articuladas em rede, ajam como movimento: apresentem propostas claras e, em seu próprio nome, busquem mobilizar a sociedade em torno delas, definir estratégias e táticas. Esta relação é muito sutil, mas muito necessária. E pode ser um excelente caminho para encerrar a polarização, presente durante alguns anos, entre o Fórum e boa parte dos movimentos sociais.

 

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