Economia para a vida e não para a morte

Frei Gilvander Moreira e Ir. Maria do Rosário Carneiro *

Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2010 - CFE/2010

Uma mãe trabalhadora desabafou com a freira: "Irmã, pelo amor de Deus, arrume um emprego para mim, pois, desempregada e com meu filho refém das drogas, está muito difícil tocar a vida pra frente." Surge, então, a oportunidade de um emprego, mas essa mãe teve que entregar integralmente os dois primeiros salários (salário mínimo, só o sal mesmo) a um traficante que ameaçava de morte o seu filho por estar endividado com o tráfico. Os meses de trabalho avançam e a espiral de dívida e ameaças só aumenta. Ameaças de morte, humilhações, lágrimas, noites mal dormidas... "Achar um bom emprego está mais difícil do que ganhar na loteria", diz um pedreiro que ajudou a construir o Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte. Uns dizem: "só salário-mínimo ou um pouco mais não compensa. É aceitar escravidão." Tudo isso nos faz ver o modo como desaparece a renda dos trabalhadores, mesmo com emprego.

A multidão dos que acreditam na Economia Informal cresce dia a dia. Ser doméstica, vigia, ajudante de pedreiro, trabalhar em telemarketing, se submeter diariamente a peregrinar em ônibus superlotados; ouvir "você deveria estar contente com o que ganha, pois tem milhares querendo o seu emprego"; não ter liberdade para fazer o que gosta... Isso e muito mais é o que está por trás de estatísticas, tais como: "Em 2008, o país registrou 54% dos brasileiros no estado de pobreza relativa, 28% na condição de pobreza absoluta e 10,5% na pobreza extrema. (FSP, 05/02/2010). A organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) prevê que o número de pessoas que passam fome chegará a um recorde de 1,02 bilhão ainda em 2010, sendo esta situação exacerbada pela persistente alta dos preços dos produtos alimentícios básicos, a partir da crise alimentícia de 2006-2008. Segundo o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), em 2007 existiam, no Brasil, 10,7 milhões de indigentes (famintos), e 46,3 milhões de pobres, ou seja, sem acesso às necessidades básicas: alimentação, habitação, vestuário, higiene, saúde, educação, transporte, lazer, entre outras...".

Por outro lado, uma elite que se consome no luxo com helicóptero para levar crianças à escola, em São Paulo; com joias sendo vendidas e compradas por 300, 400 mil reais; salários astronômicos para jogadores de futebol e executivos; 10% de funcionários públicos consumindo 90% do orçamento da Previdência; juízes, promotores e procuradores ganhando muito sem ter compromisso efetivo com os cargos que ocupam; apartamentos de 4,5 milhões de reais sendo comprados com seis vagas na garagem e elevador também para elevar o automóvel até dentro do apartamento luxuoso...

Isso é causado pela atual política econômica, que é capitalista neoliberal, cuja ordem é lucrar, lucrar, lucrar... acumular, acumular... Consequência: banqueiros cada vez mais bilionários à custa de clientes e bancários (= sociedade) cada vez mais esfolados por taxas, tarifas, juros e uma parafernália de regras que tentam justificar "roubos astronômicos" com capa de legalidade. As empresas transnacionais nunca roubaram (palavra correta, pois dizer "lucraram" seria eufemismo) tanto como agora. Uma pequena minoria de pessoas necessárias para funcionar o "sistema" ganha migalhas e uma série de incentivos que as mantêm em-pregadas (pregadas mesmo com prego invisível), pois precisam sustentar suas famílias. Se alguém reclama, o/a funcionária/o diz: "O sistema não permite. Se você não quiser pagar, terei que pagar do meu mísero salário." Quem manda no sistema está sempre distante e não pode ser acessado. Deleita-se em sacrificar vidas em nome de uma economia de morte, a capitalista. Isso é degeneração do sentido original de economia, que significa "gestão da casa". "Oikos", na língua grega, significa casa; "nomos", gestão, norma básica. De gestão da casa passou para gestão de casas para que as pessoas tivessem uma boa qualidade de vida. Com o passar do tempo, a "economia' foi assumindo outras funções: comércio, finanças, produzir bens e serviços... até descambar na ‘financeirização' da economia, resultando numa espécie de "lucronomia", economia do lucro e para o lucro de alguns à custa da vida da maioria.

A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2010 -CFE/2010- denuncia a lucronomia, que se expressa na perversidade do atual modelo econômico que visa exclusivamente ao lucro, sem se importar com a desigualdade, miséria, fome e morte de uma imensidão de pessoas e seres vivos da biodiversidade. A CFE/2010 ecoa o grito de Jesus de Nazaré e das primeiras comunidades cristãs: "Não é possível servir a Deus e ao capital." (Mt 6,24). Normalmente nas traduções aparece a oposição entre "Deus e o dinheiro", mas a melhor tradução é "capital', pois um pouco de dinheiro é necessário para se viver e conviver. Capital é dinheiro sendo usado para gerar mais dinheiro. Logo, o que o evangelho denuncia é a idolatria do capital que reduz os trabalhadores a meras máquinas, deixando-os, na prática, em situações análogas à de escravidão. Daqui a algumas décadas, historiadores dirão: "Em 2010 quem ganhava salário-mínimo (R$520), 600, 700, 800 reais era escravo sem saber".

Quem busca saída pessoal sem se preocupar com a multidão dos escravizados pela atual política econômica dificilmente conseguirá melhoria econômica e de vida. Entrar na economia informal - ser camelô, mascate - pode ser um paliativo, mas o poder público, via de regra, trata os camelôs da mesma forma que o mercado. São frequentes nas ruas das capitais cenas como as de fiscais da prefeitura que chegam de repente onde os camelôs estão trabalhando e, sem nenhum diálogo, recolhem todo o material de trabalho, tomam as mesas/bancas que apoiam as mercadorias e confiscam tudo. O pior: os fiscais "empregados," da prefeitura, são pessoas que têm em suas famílias pessoas que tentam sobreviver na economia informal ou elas mesmas viveram tal experiência. Muitas vezes, diante desse tipo de abordagem, pais e mães de famílias retornam não se sabe para onde, sem o dinheiro do leite ou do remédio que naquele dia esperavam levar para casa. É o mesmo Estado/mercado que omite políticas públicas, que fomenta a arrecadação de impostos e elimina os que não geram capital e lucro.

A grande boa notícia para os empobrecidos e excluídos que a CFE/2010 quer anunciar é: Somente uma Economia Popular Solidária (EPS) elevada a status de política pública de Estado a partir das necessidades básicas do povo poderá ser uma Economia de vida e não de morte. Eis o momento oportuno -kairós- para se conhecer, experimentar e engajar-se em Grupos de EPS. Hoje já existe uma imensa rede de EPS pelo Brasil afora. São micro e pequenas cooperativas de produção e comercialização, que geram renda, nas áreas de alimentos, de artesanato, de vestuário, de arte, de serviços etc.

É óbvio que uma Economia Solidária assumida em nível de Estado exige também uma justa distribuição de riqueza e renda, regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na atual Constituição brasileira, reforma tributária que faça quem ganha mais pagar alíquotas maiores (por ex.: Imposto de renda não apenas com duas faixas, mas com 6 ou 7 faixas como é em muitos países.) e a aplicação dos recursos públicos, oriundos de impostos, na garantia dos direitos fundamentais (Capítulo V da Constituição), sobretudo em um modelo de educação não bancária, mas libertadora, como instrumento indispensável à concretização da Justiça Social.

Em breve, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária -FBES- lançada campanha para arrecadar 1.300.000 assinaturas de eleitores para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular visando a criar uma Lei Geral da Economia Popular Solidária, que certamente, na linha do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), exigirá a criação de um PRONADES (Programa Nacional de Desenvolvimento da Economia Solidária). Além disso, teremos que fortalecer a luta pela realização de reforma agrária, fortalecimento da agricultura familiar na linha da agroecologia e construção de uma sociedade sustentável. Por aí passa uma economia para a vida e não para a morte.
Belo Horizonte, 12/02/2010.

* FG: Mestre em Exegese Bíblica; professor de Teologia Bíblica; assessor da CPT, CEBs, SAB e Via Campesina / Ir. Maria: Congregação das Filhas de Jesus, Bacharel em Direito

 

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