CPI, MST e a Barbárie

Claudemiro Godoy do Nascimento

Mais uma vez, na história contemporânea brasileira, somos acometidos pela tentativa de criminalização dos movimentos sociais do campo, em especial, o MST. Na verdade, há muito tempo, a elite agrário-ruralista incita ideologicamente a sociedade brasileira a reproduzir a versão dominante. Antigamente, poder-se-ia falar de capitães do mato que continuam a existir na figura emblemática dos jagunços contratos pelo camuflado empreendedorismo rural que representa os interesses dos velhos donos das antigas capitanias hereditárias e, hoje, dos grandes latifúndios do agronegócio. Dessa forma, não há como esquecer o processo de criminalização contra os movimentos sociais que foi sendo criada pela elite agrária no intuito de conter a suposta "desordem" em nome de uma ordem positivista que mantêm a sociedade de classes onde todos aceitam passivamente a condição que lhe é imposta.

Muitos acontecimentos criminosos foram realizados pela mesma elite que hoje criminaliza os pobres do campo, a saber: Palmares, Canudos, Contestado, as Ligas Camponesas, a Comissão Pastoral da Terra, a Contag, o MAB, o MST, Via Campesina, entre outros tantos. Todos aqueles que postulam pedagógica e politicamente a resistência contra a ordem estabelecida pelas elites são amordaçados pela patologia da opressão.

Como esquecer a Revista Veja tendo como capa João Pedro Stédile comparado a imagem do demônio bem ao gosto medieval onde se usavam as imagens para amedrontar as pessoas? Como esquecer a violência praticada há séculos com os camponeses no Brasil em nome da defesa da sacrossanta propriedade privada? Como esquecer a CPI da Terra que em nome de uma democracia tutelada permitiu a criminalização hedionda dos movimentos sociais do campo? Como esquecer a mídia, a serviço sabe-se de quem, que se presta a um papel de inventar estórias e contos de fada acerca do maior movimento social da América Latina e compará-lo com uma simples guerrilha armada? Como esquecer o recente episódio das laranjas que foram derrubadas numa ação coletiva do MST realizada em terras griladas da União e que hoje estão sob a guarda da empresa Cutrale?

Novamente, o MST se torna midiático. Continuo acreditando que a sociedade brasileira não conseguiu superar o modo de produção das capitanias hereditárias, das sesmarias e do latifundiário. Pelo contrário, há sem dúvida um fortalecimento do modo de produção latifundiário que tentar mascarar o real, o concreto, a vida e o próprio paradoxo existente na sociedade brasileira, onde poucos ricos se tornam cada vez mais ricos à custa dos milhares de pobres cada vez mais pobres.

Nesta última imbecil criminalização, o MST se tornou notícias por causa de laranjas. Tive que, ao menos, tentar explicar para meus alunos, professores e outros conhecidos o que se encontra por detrás dessa criminalização para com o MST e também com outros movimentos sociais do campo. Sentia que as explicações que dava eram insuficientes. Parecia haver um processo de crescimento da patologia criada contra o MST. Dessa vez, confesso, está sendo difícil defender a causa na qual acredito. As pessoas parecem estar realmente movidas por uma patologia social que cega e paralisa a consciência crítica.

Mas como, que absurdo, derrubarem pés de laranjas? E hoje, pensando sobre essa questão, começo a compreender o quanto nossa sociedade se encontra doente. A doença se chama alienação e Marx já a previa desde 1848. Comecei então a imaginar: e se os pés de laranjas fossem os trabalhadores rurais sem terra? Qual seria a reação das pessoas, dos aparelhos ideológicos do mercado e do Estado, bem como, da sociedade? Com esta problematização comecei a perceber que estamos num estado de barbárie absoluta. Os mesmos que hoje se deleitam na defesa intransigente dos pés de laranja são os mesmos que no passado recente nada disseram contra os massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás. São os mesmos que não se comovem com o assassinato de líderes sindicais, de trabalhadores rurais, de padres e pastores, de religiosas e religiosos, de militantes, de advogados ligados aos movimentos sociais. Estes merecem morrer... já, os pés de laranja representam a fortaleza do capital e merecem viver na propriedade privada grilada da União. Aliás, a grilagem realmente pouco importa neste momento, a questão é a condenação do MST.

Como se não fosse suficiente, os políticos de plantão resolveram agir. Querem criar uma CPI do MST. Talvez, torne-se a primeira CPI sem pizza.

É realmente cômico ver determinados senadores e deputados federais esbravejando contra o MST e buscando coletar assinaturas que sejam suficientes para se instalar mais uma CPI. Ao invés de CPI do MST porque não fazer CPI das terras griladas no Brasil, CPI das Capitanias Hereditárias, CPI do Latifúndio, CPI do Agronegócio etc. Mas porque novamente essa onda de vexatória pública contra o MST? Porque o MST representa a última esperança contra o modo de produção capitalista. Trata-se de um movimento social que ainda acredita no socialismo como alternativa política e organizativa e que defende outro projeto de sociedade para o Brasil. Diante disso, as vozes enfurecidas dos representantes políticos e empresariais do agronegócio resolveram partir para o confronto.

O que realmente está em jogo nesta questão? Para os latifundiários, colocar um fim ao MST e restabelecer a ordem social pensada pelos defensores da propriedade privada que é um dos alicerces do modo de produção capitalista. Para o MST, promover a luta de classes e buscar politicamente outro tipo de sociedade, baseada na eqüidade e na justiça histórica e social. Trata-se de uma luta entre os proprietários dos meios de produção e os proprietários da força de trabalho, ou seja, uma luta entre burguesia latifundiária e proletários camponeses.

A instalação da CPI evidenciará que a classe dominante dos coronéis, dos fazendeiros, dos donos do poder é que realmente comandam as relações de capital e trabalho na sociedade brasileira. Provavelmente, a CPI se instalará por mais que o Planalto não queira. Mas não será a CPI do MST, pelo contrário, será a CPI da barbárie que tenta há muito tempo encontrar um bode expiatório que pague todos os erros cometidos pela desordem que existe. Com certeza não se tocará no assunto dos massacres, dos assassinatos, das grilagens de terra (grilagem de terra pode, derrubar laranjas não pode), da pistolagem no campo que se tornaram verdadeiras milícias nas mãos dos fazendeiros (alguns deles estão no próprio Congresso e farão parte da CPI). Não se falará sobre reforma agrária, a questão primordial é simples e prática: condenar o MST.

Contudo, ainda acredito que a história nos mostra caminhos. Poderão condenar o MST. Poderão tentar matá-lo. Mas ele ressurge sempre mais forte quando episódios como das laranjas acontece. De Pilatos a Hitler, de Hitler ao nosso fardo tempo histórico, todos tentaram calar a voz pedagogicamente profética dos contrários à barbárie. Não será dessa vez que deixará de surgir outras vozes no interior do próprio MST. Para mim, a questão é tão complexa que apresenta, talvez, uma única certeza, já que as incertezas estão mais presentes neste debate dos contraditórios. Por isso, concordo com o velho Cazuza e parafraseando-o afirmo: Essa burguesia latifundiária fede continua promovendo a barbárie.

* Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutorando em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins - UFT/Campus de Arraias (claugnas@uft.edu.br).

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