A teologia na era da migração: ver Cristo nos olhos de um estrangeiro

Daniel G. Groody

Essa é a opinião de Daniel G. Groody,

A migração sempre fez parte da história humana. Mas por causa das amplas mudanças causadas pela globalização, mais pessoas estão migrando do que antes, instigando alguns a chamar a nossa geração de "a era da migração".

Nos últimos 25 anos, o número de pessoas em movimento dobrou de 100 milhões para quase 200 milhões de pessoas. Uma em cada 35 pessoas ao redor do mundo está vivendo agora fora de sua terra natal. Isso é aproximadamente o equivalente à população do Brasil, o quinto maior país do planeta.

Muitos migrantes são desenraizados à força: aproximadamente 30 a 40 milhões não possuem documentos, 24 milhões são deslocados internos e quase 10 milhões são refugiados.

Sendo uma das questões mais complexas do mundo, a migração enfatiza não apenas conflitos em fronteiras geográficas, mas também entre segurança nacional e insegurança humana, direitos soberanos e direitos humanos, lei civil e lei natural e entre cidadania e discipulado.

Debatida ardentemente, muito já foi escrito sobre as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais da imigração, mas surpreendentemente muito pouco foi escrito a partir de uma perspectiva teológica, e ainda menos a partir dos próprios imigrantes.

Porém, o tema da migração está no coração das escrituras judaico-cristãs. Desde o chamado de Abraão ao êxodo do Êxito e a travessia de Israel pelo deserto e a posterior experiência do exílio, a migração fez parte da história da salvação. Desde o nascimento de Jesus, entendido como o movimento de Deus em direção a este mundo estrangeiro como um ser humano, até sua ressurreição como um retorno ao Pai, e desde a viagem da Sagrada Família até o Egito, para a atividade missionária da Igreja, a verdadeira identidade do povo de Deus está inextrincavelmente entrelaçada com a história do movimento, do risco e da hospitalidade. A migração forma o coração de quem somos como seres humanos diante de Deus.

A atual economia global precipita situações que levam as pessoas para fora de suas terras natais, enquanto, ao mesmo tempo, atrai-lhes para lugares de maiores oportunidades. Atualmente, 19% do mundo vivem com menos de um dólar por dia, 48% vivem com menos de dois dólares por dia, 75% vivem com menos de 10 dólares por dia, enquanto 95% vivem com menos de 50 dólares por dia. O 1% mais rico do mundo tem tanto quanto os 57% mais pobres juntos. E os três indivíduos mais ricos têm tanto quanto as 48 nações mais pobres somadas.

Dada essa realidade econômica, a migração deve ser entendida não como um problema em si mesmo, mas como um sintoma de questões mais profundas, enraizadas em amplas desigualdades. Pelo fato de a densidade do capital global residir no hemisfério Norte, os fluxos migratórios tendem a ser na direação do Sul para o Norte, não tanto porque as pessoas querem se tornar ricas, mas porque muitas estão buscando apenas sobreviver e viver além das exigências mínimas das necessidades diárias.

Dois dos maiores "pontos centrais" junto a essa migração Sul-Norte são as fronteiras EUA-México e o Estreito de Gibraltar entre a Espanha e o Marrocos. Para muitos migrantes ao redor do mundo, essas duas áreas marcam o portão entre a escravidão de suas terras natais e a terra prometida de melhores oportunidades. Depois de ouvir os migrantes falarem durante muitos anos sobre suas experiências ao longo dessas fronteiras, eu tentei discernir a espiritualidade dos migrantes e uma teologia da migração.

No ano passado, em Ceuta, colônia ocupada pela Espanha junto à costa marroquina, eu encontrei um refugiado chamado Emmanuel (ver foto). Para migrantes e refugiados como ele, Ceuta marca os limites externos da fortaleza Europa. Se ele conseguir atravessar uma cerca de arame farpado de quase seis metros de altura, ele pode evitar o risco de morte ao nadar através das águas limítrofes entre o Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo, onde milhares de pessoas morreram na última década. Riscos semelhantes existem para migrantes ao longo da fronteira EUA-México devido ao terreno e ao clima nos desertos do sudoeste norte-americano.

Emmanuel falou comigo sobre sua jornada através da África até Ceuta. Ele falou sobre o fato de deixar sua terra natal, atravessar o deserto do Saara a pé, a morte de sua irmã por causa do calor extremo, o fato de se esconder nas montanhas, vivendo entre plantas e animais silvestres, passar um ano inteiro com apenas um banho, sofrendo violações dos direitos humanos e muitas outras indignidades. Ele me perguntou sobre meu ministério sacerdotal na universidade. Eu lhe disse que eu dava aulas sobre a questão da teologia e da migração, o que o levou a perguntar algo que ele havia pensado durante um longo tempo: "Algumas pessoas dizem que a razão de nós sofrermos tanto na África é porque somos descendentes de Judas, e que, por causa do que fizemos a Jesus, devemos passar por tantos conflitos. Isso é verdade?".

Sua questão apenas me deixou mais consciente de como a migração precisa ser reformulada não apenas política, sociológica, cultural e economicamente, mas também teologicamente.

Uma teologia da migração

A premissa básica de uma teologia da migração é que Deus, em Jesus, amou tanto o mundo que migrou para o longínquo e distante país da nossa existência humana corrompida e entregou sua vida em uma cruz para que pudéssemos nos reconciliar com ele e migrar de volta para a nossa terra natal com Deus e desfrutar a fraternidade em todos os níveis de nossas relações. Ler a tradição cristã a partir de uma perspectiva migratória envolve a percepção do que Deus está fazendo no mundo por meio de Jesus Cristo e a compreensão do desejo de Deus de atravessar as diversas barreiras que dividem e alienam nossas relações.

Ao unir a tradição cristã com a experiência, eu destaquei quatro fundamentos para essa teologia: o Imago Dei, cruzando a divisão problema-pessoa; o Verbum Dei, cruzando a divisão divino-humana; a Missio Dei, cruzando a divisão humano-humana; e a Visio Dei, cruzando a divisão país-Reino.

Esses fundamentos dão expressão às formas pelas quais Deus reconcilia o mundo com ele, quebra as divisões em nossas relações e nos ajuda a compreender o movimento de Deus ao nosso mundo e a nossa resposta à graça de Deus.

A noção de Imago Dei (Imagem de Deus) surge nas primeiras páginas da escritura, nas quais aprendemos que os seres humanos não são apenas aquilo de que as rotulamos, mas pessoas que carregam a própria imagem e semelhança de Deus. Se as pessoas a caminho são vistas apenas como migrantes ou trabalhadores ou, pior, como infratores, estrangeiros ou criminosos, então seu sofrimento não nos apresenta nenhum apelo moral, e podemos continuar contentes do nosso lado do muro divisório, porque nos convencemos de que eles estão excluídos por alguma razão.

No núcleo da divisão problema-pessoa está a experiência da desumanização. O que os migrantes geralmente dizem ser mais difícil para eles não é a dor e o sofrimento da jornada física, tão horrendo quanto cruzar desertos e oceanos e viajar clandestinamente em trens e contêineres de carga. "O que mais machuca", diz um homem do México, "são as indignidades, quando as pessoas lhe tratam como um cachorro, como se você fosse um pedaço de lixo, como se você não valesse nada como ser humano".

"Muitos animais vivem melhor do que nós", diz outro homem da Índia. "É como se não valêssemos nada para as pessoas, e se morrermos no oceano não terá importância".

"Alguns nos chamam de 'cucarachas' [baratas]", diz um migrante de Honduras, "mas não somos insetos, mas sim pessoas que têm sentimentos e famílias, que esperam por um futuro melhor". A parte mais difícil de ser um imigrante para muitas pessoas é a experiência de ser ninguém para qualquer um [no one to anyone].

Deus como refugiado

A segunda noção teológica central para o debate sobre imigração é o Verbum Dei (Palavra de Deus). Na Encarnação, Deus, em Jesus, cruza a divisão que existe entre a vida divina e a vida humana. Na Encarnação, Deus migra para a raça humana, fazendo o seu caminho rumo ao longínquo país da discórdia e da desordem humanas, um lugar de divisão e de dissensão, um território marcado pela morte e pelo tratamento degradante dos seres humanos.

No relato de Mateus, Deus não apenas assume a carne humana e migra para o nosso mundo, mas na verdade se torna um refugiado quando sua família escapa da perseguição política e foge para o Egito (Mateus 2, 13-15). Jesus assume a condição humana do mais vulnerável entre nós, padecendo fome, sede, rejeição e injustiça, fazendo o caminho da cruz, superando as forças da morte que ameaçam a vida humana. Ele entra para o território corrompido da experiência humana e oferece suas próprias feridas em solidariedade àqueles que estão em sofrimento. A história de Jesus dá a muitos migrantes uma razão para esperar, especialmente naquilo que geralmente parece ser uma penúria sem esperança.

Se o Verbum Dei tem a ver com o cruzamento de Deus sobre a divisão divino-humana, a missão da Igreja, ou a Missio Dei (Missão de Deus), é o cruzamento da divisão humano-humana. A Missio Dei proclama um Deus da vida ao construir, nas palavras do Papa Paulo VI, a "civilização do amor". Imitando Jesus, ela procura tornar real a prática da comensalidade por meio da qual Jesus passa por cima das fronteiras humanas que dividem os seres humanos entre si e convida o povo para o Reino de Deus.

Finalmente, a Visio Dei (Visão de Deus) tem a ver com o fato de olhar o mundo de forma que o Reino de Deus forme a nossa visão sobre quem somos no mundo. Ela admite o papel das identidades nacionais, mas reconhece que os compromissos mais profundos dos cristãos estão preditas em uma missão de reconciliação, no sentido de que as fronteiras que definem os países podem ter algum valor relativo, mas não são elas que, em última instância, definem o corpo de Cristo.

Quando bispos, padres e leigos se reúnem, a cada ano, em El Paso, no Texas, para celebrar uma Eucaristia entre dois países - com o muro fronteiriço no meio -, eles expressam o amor universal, indivisível e irrestrito de Deus para com todas as pessoas. Ao unir as pessoas além das construções políticas que nos dividem, essa Eucaristia manifesta as demandas morais do reino de Deus, as possibilidades éticas da solidariedade global e a visão cristã de uma jornada de esperança.

Quando eu terminei de falar com Emmanuel, ele se levantou e, erguendo seus braços aos céus, gritou: "Sim, Deus. Eu não posso acreditar que você faria isso para mim". Naquele momento, ficou totalmente claro para mim que a missão da Igreja é simplesmente uma participação no próprio ministério de Jesus, levando boas novas para os pobres, proclamando a libertação aos cativos, aos cegos a recuperação da vista e anunciar o desejo do Senhor pela libertação humana (Lucas 4, 18-19) para todas as pessoas nesta estadia terrena.

A teologia oferece não apenas mais informação, mas uma nova imaginação. Ela fornece uma forma de pensar a respeito da migração que mantém as questões humanas no centro do debate e nos lembra que a nossa própria existência como povo peregrino é migratória por natureza. Buscando superar tudo o que nos divide para nos reconciliar em todas as nossas relações, o discipulado cristão nos lembra que os muros mais difíceis de cruzar são os que existem nos corações de cada um de nós.

Incapazes de ultrapassar essas divisões por nós mesmos, a fé cristã recai, em última instância, naquele que migrou do céu para a terra e que, por meio de sua morte e ressurreição, passou por cima da morte para a vida. Se o termo estrangeiro ainda deve ser usado, ele tem pouco a ver com alguém que não tem documentação política, mas sim com aqueles que se distanciaram tanto de seu próximo necessitado que não conseguem ver nos olhos do estranho um espelho de si mesmos, a imagem de Cristo e o chamado à solidariedade humana.

* padre da Santa-Cruz e professor de teologia na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, em artigo para o sítio National Catholic Reporter, 14-09-2009.

Tradução de Moisés Sbardelotto.

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