A crise dos "inexistentes"

Rodrigo Andreotti Musetti *

A compaixão e a solidariedade deveriam ser inerentes a toda sociedade de seres humanos, a toda comunidade (comum unidade), mas, infelizmente, não se têm globalizado as oportunidades de acesso e gozo dos bens materiais, o bem comum, a paz e a justiça social! Sem ingressarmos no mérito da gravíssima acusação de que alguns segmentos estão aproveitando a situação, de forma criminosa, aética e abjeta, para obterem vantagens indevidas, o fato é que não se fala em outra coisa a não ser na “Crise”. Esse monstro multiface parece estar abalando as estruturas que sustentam as nações ditas desenvolvidas e modernas, nas quais os seres humanos foram reduzidos e condicionados a ser meros serviçais da sociedade de consumo (garantida, no âmbito da economia, com a autovalorização indefinida do capital a fim de firmar o capitalismo como modo de produção sustentável), gerando os podres frutos da ganância, da soberba, da inveja, da luxúria, do desperdício e da desconsideração das necessidades, do sofrimento, da vida, da dignidade e de valores propriamente humanos.

É significativo e chega a ser profético lembrar que o monstro foi ressuscitado no mundo dito “desenvolvido/moderno” em razão da tática do Banco Central Americano de diminuir estrategicamente os juros como forma de atrair (isca) as pessoas de baixa renda até as empresas hipotecárias, bancos e financeiras (que aproveitam o verdadeiro estado de necessidade dessas pessoas para realizarem refinanciamentos acrescidos de altos custos). Atraídas e traídas pelo “sonho americano” (promessa de uma vida de consumo feliz, moderna e desenvolvida), essas pessoas ludibriadas não suportaram a traiçoeira e interesseira relação que se constituiu (com o apoio do governo e seus parceiros privados) e se tornaram inadimplentes (já que as taxas de juros iniciais valem por dois ou três anos, mas depois elas passam a ser ajustadas a cada seis ou doze meses e podem crescer 50% ou mais), afetando todos que participaram do esquema, bem como o mercado financeiro. Com isso, os prejuízos foram a todos distribuídos (não se distribuíram os lucros a alguns privilegiados).

O curioso é notar que, exatamente no momento em que aqueles que se locupletam com o mito da sustentabilidade desenvolvimentista da sociedade de consumo (imposto como modelo a ser implantado, necessária e coercitivamente, por todas as nações) foram atingidos em seus lucros exorbitantes e desarrazoados (com consequencias danosas aos seus exclusivos padrões de vida moderna) é que a mídia, de forma massiva e maciça, vem divulgando e alertando o mundo do “surgimento” da crise e de seus perigosos efeitos. Para ajudar as financeiras, as instituições bancárias, as grandes montadoras de automóveis e aeronaves, os especuladores e investidores etc., surgiram, num período recorde, pacotes que ultrapassam um trilhão de dólares.

O que não se divulga e a ninguém parece interessar é que, no mundo dos subprimes (modo como são chamadas as pessoas de baixa renda que não conseguem garantir os empréstimos e seus juros exorbitantes), tachados de “subdesenvolvidos ou atrasados”, o monstro existe há muitos e muitos anos, atuando permanentemente, não só prejudicando o inexistente padrão de vida dos miseráveis, mas arrancando-lhes a dignidade e custando-lhes a vida. Para ajudar as vítimas, impiedosa e cruelmente torturadas e mortas pelo imorredouro monstro dos inexistentes, a ajuda, quando ocorre, é irrisória e aviltante, além de extremamente retardada. Para esses, não há especulação, nem petróleo, nem terrorismo e nem energia atômica que possa atrair a atenção do mundo moderno, dito humanizado. No mundo dos ignorados, 815 milhões de pessoas passam fome; a cada 4 segundos uma delas morre de fome; cerca de 1,4 bilhão não têm acesso à água limpa; a cada oito segundos morre um ser humano por uma doença relacionada à água, como disenteria e cólera, e 80% das enfermidades são contraídas por causa da água poluída.

Apesar de a fome e a extrema pobreza destruírem a dignidade e exterminarem milhões de vidas humanas, numa patente e persistente crise mundial, para o monstro dos inexistentes os governos não direcionam esforços conjuntos e nem verbas astronômicas com a mesma agilidade e intensidade com que o fazem quando estão em risco margens de lucro e bens e valores inferiores à dignidade e à vida humana.

Esse é o paradoxo da atual sociedade (constituída no modelo de consumo capitalista que se impõe como paradigma a ser seguido por todas as nações): a perpetuação da funcionalidade vigente, que fomenta a injustiça social através da discriminação (com base na posse ou status) entre os seres humanos, que ignora os valores cristãos e que continua aumentando as relações de submissão internacional e o abismo existente entre endividados e credores, pobres e ricos, “subprimes” e “primes”.

No ensinamento do Papa Bento XVI, proferido na reunião do Conselho dos Governadores do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola – IFAD, é necessário agir com determinação em prol da harmonia e da solidariedade a fim de garantir às populações carentes o acesso équo aos bens da terra, agora e no futuro. As motivações para fazê-lo vêm do amor. O amor pelos pobres, amor que não pode aceitar a injustiça ou a privação, amor que não permanece em paz enquanto a pobreza e a fome não forem banidas da humanidade. Combater a pobreza extrema e a fome, bem como promover a segurança alimentar e o verdadeiro desenvolvimento, tornam-se um imperativo que vincula toda a comunidade internacional.

* Rodrigo Andreotti Musetti é Advogado ambientalista, especialista e mestre em Direito, ex-aluno especial do Doutorado em Filosofia da UFSCar. Autor de quatro livros publicados. E-mail: rodrigoandreotti@yahoo.com.br

Fonte: Rodrigo Andreotti Musetti / Revista Missões

Deixe uma resposta

17 − dois =